terça-feira, 17 de março de 2009

A IRONIA DO PROJECTO EUROPEU

Em plena Guerra-Fria, o pensador e teólogo americano Reinhold Niebuhr escreveu um livrinho intitulado A Ironia da História Americana. Apesar de ser um texto curto em extensão e claro em estilo, é quase impossível de resumir: em cada uma das suas páginas há muitas ideias e em muitas dessa ideias muitos sentidos. Mas podemos dizer, sem receio de errar muito, que um dos seus principais objectivos é alertar contra o excesso de crença americana na sua própria virtude, que (ironicamente) poderia destruir o idealismo da própria herança americana.
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Ao lê-lo na era da globalização, e do lado de cá do Atlântico, é impossível não pensar no que seria um livro destes sobre a Europa, hoje.
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A primeira coisa a notar – nenhuma novidade – é que muito do que discutimos hoje na Europa já foi discutido nos Estados Unidos, por vezes há duzentos anos ou mais, quando se estava a construir a democracia americana.
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Mas o que mais impressiona – e até aflige – é como as ironias do projecto europeu são, quase sempre, diametralmente opostas às da história americana.
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Comecemos por aqui mesmo. Escrevendo num país com menos de duzentos anos, Niebuhr olhava já para a “história americana”. Na Europa, o continente do passado, falamos antes do “projecto europeu”.
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Nesse sentido, o futuro estaria à nossa frente – como eu acredito que está. Mas aí entra a segunda ironia: ao contrário do que se passa nos EUA, a Europa vive apenas convencida dos seus vícios e esvaziada de qualquer idealismo. Todas as palavras progressistas como “projecto” e “futuro” são na Europa pronunciadas com os mais profundos conservadorismo, cobardia e falta de ambição. Para não falar das palavras que só a medo se pronunciam, como “cidadãos” e “democracia”.
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Dizem-nos que isso se passa porque os cidadãos têm falta de confiança nos seus líderes. Esse é apenas um biombo que esconde uma ironia muito amarga: os líderes é que não têm nenhuma confiança nos cidadãos (talvez por saberem que foram eleitos) e fogem deles a sete pés. Nessa fuga para a frente, o projecto europeu faz-se (ou desfaz-se) às arrecuas. Ilustração disso é a última cimeira, em que os líderes lá se comprometeram a respeitar o Mercado Único. Olhai e vede: depois de anos a discutir o futuro Tratado de Lisboa (ele mesmo já obsoleto em face da crise) conseguiram fazer regredir a discussão até ao nível do Tratado de Roma de 1957.
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Por detrás dessa ironia vem uma outra. A cada passo (Convenção, Constituição, pseudominitratado, etc.) dizem-nos para não emitirmos qualquer dúvida ou oposição, sob risco de “bloquear o processo”. Mas, a cada passo que eles dão, o processo foca mais bloqueado. De facto, os nossos líderes conseguem muito bem desfazer o projecto europeu sozinhos. Na desconfiança que têm dos cidadãos europeus, arriscam-se mesmo a ser fatais para ele.
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A mais cruel das ironias é que nunca, como agora, precisámos mais do projecto europeu. Em qualquer dos cenários futuros, seja em globalização ou em “desglobalização”. No primeiro caso, quem mais poderá negociar à escala global senão a futura democracia europeia? No caso de a globalização ruir (como já aconteceu no passado), também só a escala europeia nos permitirá sobreviver em condições razoáveis.
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E é mesmo essa a ironia final: só o projecto europeu nos pode salvar. Mas, antes disso, vai ser preciso salvar o projecto europeu.
Rui Tavares, Historiador, Público.
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Comentário meu: Faço minhas estas sábias palavras. Sendo eu um europeísta convicto, muitas vezes me tenho interrogado sobre a direcção em que segue o “projecto europeu”, aparentemente agora sem rumo e sem evolução visível.
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Entregue a uma nova classe de políticos de qualidade duvidosa, o projecto europeu parece atolado na lama, estagnado e sem direcção definida. A estranha ironia é que, como se afirma neste texto, o “projecto europeu” é a única via evolutiva para a Europa num mundo cada vez mais globalizado. Portanto, a única solução viável para o futuro da Europa seria impulsionar o “projecto europeu” para o patamar seguinte, melhorando-o e aprofundando-o para lhe dar consistência.
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Mas tal não está a acontecer. Os políticos europeus parecem muito envolvidos em inúteis jogos florais de retórica e de maneirismos e pouco interessados em (ou incapazes de) produzirem trabalho útil. Entretanto, o mundo modifica-se rapidamente e alguns dos seus protagonistas alcançam novas metas de desenvolvimento e autoafirmação, enquanto a Europa parece apenas contemplar o seu umbigo. Entretanto perde-se tempo, porque o comboio da globalização não espera. E a Europa continua a perder terreno e a secundarizar-se cada vez mais.

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