sexta-feira, 27 de março de 2009

E depois do mercado



por Fernanda Câncio in DN

O salário médio dos portugueses é baixo e baixá-lo global e cegamente
não pode ser solução

Na Visão de ontem, uma série de economistas e outros especialistas vem, na senda de Silva Lopes, defender uma descida generalizada dos salários em 20%. O motivo é a crise, assim como, na formulação de António Nogueira Leite, "o desfasamento entre a produtividade e os custos laborais". Não sendo a economia o meu forte, acompanho Manuel Carvalho da Silva, citado na revista como ficando "maldisposto com a discussão".

Num país onde a diferença entre os rendimentos dos mais ricos e dos mais pobres é das maiores da Europa, onde o ordenado mínimo é metade do praticado em Espanha mas os salários dos gestores estão ao nível dos auferidos na Alemanha, e onde o preço dos bens de consumo é equiparado (quando não superior) ao que se pratica no resto da UE, haver quem ache que o caminho é baixar ainda mais os salários de todos custa um bocado a perceber. Claro que num contexto específico - o de uma empresa que arrisca fechar - se aceitam ajustes para salvar postos de trabalho. Mas estabelecer isso como regra geral, ainda por cima fundamentando-a numa espécie de fatalidade estrutural - a do tal desfasamento -, acrescentando ainda que "os portugueses se habituaram mal", surge apenas imoral.

O salário médio dos portugueses é baixo e baixá-lo global e cegamente não pode ser solução. Primeiro porque muitas pessoas já vivem no limiar da pobreza - mesmo se o nível de vida médio tem aumentado e as expectativas, felizmente, não têm comparação com as que existiam há 30 anos (será isso o "mau hábito"?). Em segundo lugar, a ideia de que o investimento estrangeiro poderá ser atraído com salários mais baixos já provou há muito a sua valia - há sempre salários mais baixos noutro lado, e é impossível (e indesejável) competir nesse quesito com países em que as pessoas não têm direitos. Se há empresas que só podem sobreviver com trabalho escravo, então não devem sobreviver - e essa é provavelmente uma das grandes consequências desta crise, a da inevitabilidade de reformulação de certos sectores, sob pena de desaparecerem. Terceiro: a animação da economia também depende do consumo - se se baixarem 20% os salários de toda a gente, é muito provável que o consumo baixe pelo menos nessa percentagem, implicando a descida de preços, falência de mais empresas e, por arrasto, uma eventual nova descida dos salários, numa espiral sem fim.

Alegar que por mais que se resista à ideia a redução salarial se aplicará "a bem" (por acordo) ou "a mal" (devido ao dumping criado pelo aumento do desemprego) é, paradoxalmente, negar a existência do mercado: mesmo num contexto de crise há sectores que florescem. E se foi uma ideia de mercado em roda livre e louca, sem relação com a realidade e o realismo, que nos trouxe onde estamos, convém talvez não querer substituí-lo completamente. É capaz de haver uma outra via - a ver se a encontramos, de preferência sem histerias e mantendo em vista algo de fundamental: a dignidade das pessoas e do trabalho.

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