quinta-feira, 19 de março de 2009
Poema intemporal
[A Força das Coisas - 14.03.2009]
A Defesa do Poeta
Poema de Natália Correia (in "A Mosca Iluminada", 1972; "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias", 1993)
Recitado pela autora (in EP "Natália Correia Diz Poemas de Sua Autoria", VC, 1969; CD "A Defesa do Poeta", EMI-VC, 2003)
Também recitado por: Eunice Muñoz; Afonso Dias (in CD "Poesia de Natália Correia", Associação Cultural Música XXI, 2007)
Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.
Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.
Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.
Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de perdão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.
Nota da autora: «Compus este poema para me defender no Tribunal Plenário de tenebrosa memória, o que não fiz a pedido do meu advogado, que sensatamente me advertiu de que essa minha insólita leitura no decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a sentença.» (in "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias", 1993
Etiquetas:
Julgamento,
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