1º – A ofensiva capitalista neoliberal tem feito recair sobretudo sobre as mulheres a precarização dos vínculos contratuais, o trabalho clandestino, a erosão dos direitos laborais, o abaixamento do custo da força de trabalho e o desemprego.
2º – Por seu lado, o Estado tem vindo a transferir para o trabalho doméstico e não remunerado das mulheres funções de assistência social que antes estavam entregues aos serviços públicos. É sobre elas que pesa a principal carga da redução da intervenção estatal a este nível, pois têm de cuidar a tempo inteiro dos filhos pequenos, dos deficientes, dos acamados e idosos não abrangidos pela previdência social.
3º – Os códigos de trabalho neoliberais reforçaram a concepção conservadora da família e a precarização de direitos das mulheres. As jornadas múltiplas de trabalho fazem com que a maioria das mulheres trabalhe por dia mais horas do que os homens, porque acumulam tarefas domésticas e de apoio à família. Em todo o mundo as mulheres ganham menos que os homens pelas mesmas funções; e estão sujeitas a todo o tipo de violência sexista: no trabalho, na rua, em casa. A mulher continua a ser a proletária do homem, a criada para todo o serviço. Os cuidados prestados pelas mulheres na esfera doméstica constituem efectivamente um sistema não oficial de saúde e por isso mesmo deveriam ser introduzidos e valorizados nas políticas sociais.
4º – As mulheres estão limitadas a sectores tradicionais do emprego feminino e de mão-de-obra mal paga e instável (têxteis, confecções, calçado, indústrias alimentares, indústria eléctrica e electrónica, hotelaria). Em momentos de crise, elas são as primeiras a ser despedidas e as últimas a ser contratadas. A participação das mulheres no mercado de trabalho não tem sido acompanhada de mais qualidade e valorização no emprego. Acentua-se a desvalorização do trabalho feminino, aumenta a precarização e a exploração.
5º – A libertação feminina continua a ser uma utopia. E não serão as actuais organizações feministas a promover essa emancipação, porque as correntes dominantes não têm orientação revolucionária. Precisamos de um movimento aberto sem ser promíscuo (que recuse alianças com mulheres de direita e não subordine as suas tácticas às ambições institucionais de partidos reformistas), sensato sem perder a ousadia, antipatriarcal sem ser sexista ou antimasculino, subordinando todo o seu programa às necessidades das mais exploradas e não da elite, preocupado em gerar novas ideias e uma nova audácia da parte das oprimidas.
6º – As principais causas de género que estão por resolver são o direito a salário igual para trabalho igual, o direito à descriminalização do aborto, a denúncia da violência conjugal, familiar ou social contra a mulher. A estas há que contrapor a luta pela igualdade em casa, no trabalho, na sociedade e na política e a recusa das mulheres a substituir-se aos serviços estatais de segurança social e assistência na doença, contrapondo-lhe a socialização das tarefas domésticas e dos cuidados infantis e de saúde.
7º – A mobilização das mulheres para estas frentes de luta, em vez de as “desviar da luta política”, como argumentam activistas imbuídos de machismo inconsciente, estimularia enormemente a presença das mulheres nas lutas políticas e sociais mais gerais.
8º – Contudo, só um ascenso do movimento sindical e reivindicativo ou uma crise social e política aguda poderá suscitar o envolvimento das trabalhadoras em geral nesta luta. Nesse momento, um maior protagonismo como cidadãs e lutadoras poderá despertar tal consciência na grande massa das mulheres.
9º – As mulheres dividem-se por classes, mais do que se identificam por razões de sexo. Mas não só. A sua situação é mais complexa porque elas têm uma posição paradoxal e contraditória na luta de classes: são vistas, por um lado, como mão-de-obra barata pelo capital e, pelo outro, como concorrentes pelos trabalhadores homens; além de serem assalariadas, debatem-se com a necessidade de atender também à sua tarefa, executada a título gratuito, de esposas, mães, repositoras da força de trabalho e fornecedoras de cuidados infantis e de saúde.
10º – As organizações sindicais ou de classe não têm sabido lidar com estas quatro contradições (exploração, patriarcalismo, desigualdade e violência) nem parecem aperceber-se da combinação complexa de papéis e funções contraditórias que pesam sobre as mulheres. Respondem lhe apelando à organização imediata das exploradas, criam secções femininas nas suas estruturas, de imediato secundarizadas, e apelam para que se integrem na luta geral, sem querer saber se existem condições para tal. A burocratização e colocação em surdina dos “assuntos da mulher” tem servido de alavanca para a promoção de algumas funcionárias, que agem como representantes do conjunto de todas as suas companheiras, mas não resolvem um só dos problemas apontados.
11º – Por seu lado, os partidos de vanguarda também não têm abordado com a necessária energia a sua responsabilidade em transformar as novas e velhas realidades do mundo feminino. Fazem por ignorar um fenómeno iniludível, ao qual não dão resposta: os revolucionários do século XX pensavam que o ingresso das mulheres no trabalho produziria a sua emancipação social e política. No entanto, e apesar da relativa independência económica obtida, não foi isso que se passou. Os valores dominantes que fazem da mulher a proletária do homem transportaram-se integralmente para a esfera da produção e reflectem-se em novas desigualdades.
12º – Esta realidade objectiva não pode ser escamoteada com palavras de consolo que apenas escondem, muitas vezes, uma insensibilidade patriarcal empedernida. Há que dizer que as desigualdades em relação aos homens se mantêm e se agravam e que as discriminações ancestrais subsistem. Prossegue a dominação masculina no local de trabalho, no universo doméstico ou na esfera pública.
13º – Também não há igualdade na esfera política. A hipocrisia dos programas oficiais pela igualdade revela se a todos os níveis, mesmo entre os quadros superiores. Nos governos, a maioria dos cargos são ocupados por homens. Na administração pública, o número de mulheres decresce à medida que se sobe na hierarquia. Nas empresas, as mulheres, mesmo as mais qualificadas que os homens, raramente ascendem aos cargos máximos.
14º – Por causa da violência contra a mulher, não lhe estão assegurados direitos humanos tão fundamentais como o direito à vida, à integridade pessoal e à dignidade. Mais de metade das esposas foram já vítimas de violência conjugal – ou seja, uma em cada duas mulheres foi sujeita a violência física pelo companheiro ou ex companheiro. Pior: morrem por ano milhares de mulheres em consequência de agressões violentas e de sequelas de maus tratos, fenómeno generalizado que abrange todas as classes sociais sem excepção e causa mais mortes e incapacidades entre mulheres do que o cancro, a malária, os acidentes rodoviários ou a guerra. A casa onde vivem as mulheres é o local mais perigoso para elas, porque é aí que se regista mais violência.
15º – Pior ainda, a violência começa antes do nascimento: devido a infanticídio ou aborto selectivo, há no mundo um défice de 200 milhões de mulheres, segundo estudos da ONU.
16º – Aumentam as famílias monoparentais e a maioria destas são constituídas por mulheres. São famílias mais pobres, mais disfuncionais e mais vulneráveis do que as outras e é sobre a mulher que recai toda a responsabilidade.
17º – A vulnerabilidade das mulheres face à exclusão social e a fragilidade da rede de apoio social faz com que a feminização da pobreza se acentue cada vez mais. Neste quadro global, as condições de vida, de trabalho e de sobrevivência das mulheres do mundo subdesenvolvido são muito mais precárias e mais difíceis do que as dos países desenvolvidos.
18º – Recusar à mulher o direito de decidir quando ter filhos e penalizar o aborto é a forma mais brutal de discriminação e um atentado à liberdade da mulher. Ser mãe não é só um acto físico, é uma empresa que pressupõe, para a mulher, um empenhamento pessoal e emocional para toda a vida, condicionando-a de forma indelével. A mulher não é uma parideira ou incubadora, é o ser humano mais dotado de aptidões naturais e inteligência para criar e fazer crescer outros seres humanos, como tem sido provado ao longo de toda a história natural e social da humanidade.
19º – Todas as medidas paliativas postas em prática pelos governos têm como objectivo interesses capitalistas: elevar a taxa de lucro, diminuir custos estatais, minimizar a conflitualidade. Os direitos humanos só lhes interessam se puserem em jogo o direito do capital a uma mão-de-obra escorreita e em boas condições de exploração.
20º – São precisas grandes mudanças civilizacionais para subverter esta ordem patriarcal. Só a luta das mulheres pelos seus direitos poderá conferir à luta geral pela emancipação um cunho feminista e só essa marca imposta pelas mulheres à luta geral poderá salvar a revolução futura de soçobrar.
21º – A persistência em todo o mundo de factores de desigualdade e de discriminação da mulher, enraizados desde há séculos, reforçados e agravados pela globalização do capitalismo, indica-nos como constatação inevitável que o caminho que falta fazer é muito longo e não será fácil de percorrer. Os sinais crescentes de barbárie, visíveis na brutalidade da exploração dos povos, na selvajaria das recentes guerras do Afeganistão, Iraque e Palestina, na natureza cada vez mais celerada do imperialismo, vão-se delineando com tal clareza que é fácil perceber que só poderão ser conjurados por uma vaga revolucionária geral que tarda em levantar-se.
22º – O caminho que falta percorrer para as mulheres porem a sua marca própria no levantamento anticapitalista é tão grande, que não se pode perder tempo. É hoje, agora, que tem que começar a derrocada do sistema milenar de servidão da mulher.
23º – A organização e luta pelo socialismo deverá ter como eixo, ao mesmo tempo, a questão de classe e a questão de sexo. Essa evolução requer investimentos de longo prazo em debate ideológico, formação e outras actividades práticas que desestabilizem as ideias e atitudes vigentes, além de exigir o combate a expressões de conservadorismo popular entre as massas.
24º – Caso a revolta dos oprimidos se verifique antes que ocorra uma catástrofe global, há razões para acreditar que a história da humanidade, que tem sido também a história da opressão das mulheres, evolua numa direcção diferente, para um mundo construído sobre o caos deste que urge destruir. Aí, talvez se possa dizer finalmente, como Louis Aragon, que «a mulher é o futuro do homem».
Ana Barradas
http://www.infoalternativa.org/mundo/mundo201.htm
sábado, 6 de setembro de 2008
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