quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Discurso sobre a inveja


No Público, sempre na virtuosa gazeta, o dr. José Miguel Júdice faz uma acusação crudelíssima: "A inveja dá-nos lugar no Guinness." A curta frase já bastava para nos aterrar. O ferrete da ignomínia crestava os nossos corpos trémulos, trespassava-os e carregava de torpeza a nossa alma miserável. Porém, o famoso advogado, inclemente, fero e definitivo, apoiou-se no épico e adiantou esta tenebrosa abjecção: "Camões terminou simbolicamente Os Lusíadas usando essa palavra, que é a que melhor nos define como povo."

Um amigo abraçou-me na rua. Soluçava de comoção: "Achas que sou invejoso?" Impressionado com tamanha dor, respondi: "De quê? De quem? De mim?" E ele: "Do mundo!" Acalmei-o. O sofrimento atroz do meu amigo moldava-se-lhe nos gestos desencontrados, no olhar assustadíssimo. Correu, rua abaixo, esmagado pela acusação do vasto intelectual e soltando gritos estridentes: "Sou um desgraçado! Sou um invejoso!"

Pessoalmente, sou capaz de reconhecer-me atingido pelo infame sentimento. Toco, há anos antiquíssimos, no batente da prosa; escrevo com razoável dose de gramática e equilibrado senso; até houve um amável crítico, doublé de mavioso poeta, que, em tempos, publicou esta frase gloriosa: Fulano de Tal [eu] "não sabe escrever mal" -, mesmo assim, rateio a mensalidade com a minúcia e a desconfiança de um prestamista. Disfarço, faço de conta que, mas rói-me o espírito e escangalha-me o sono o pensamento denso, a ideia fustigante de ser o chefe nominal de uma família secularmente empobrecida. Mas a leitura do magno artigo do dr. Júdice também me atiçou uma felicidade absurda. Afinal, não era apenas eu, e milhões de outros portugueses, os desafortunados que rangiam os dentes de despeitada raiva. "Os gestores em Portugal ganham em regra pouco. Mesmo as empresas que funcionam bem, como a CGD, remuneram claramente abaixo dos valores do mercado", asseverava o articulista sem que a irresistível locução apresentasse qualquer esgar de dúvida.

A inveja não mordia, somente, aqueles portugueses únicos, definitivos e inequívocos que não ascenderam, nem nunca irão ascender, à primeira escala do ranking. Numa vil lubricidade, os "gestores" [que], "em Portugal ganham em regra pouco", devem odiar-se uns aos outros: a inveja nasce do ressentimento, o ressentimento não tem rosto e é tão contundente como a luta de classes.

E, entre outras, uma dúvida persistente instalou-se na minha malvada curiosidade: como o dr. Júdice não selecciona o português despeitado do que, eventual e dubitativamente o não é; como o dr. Júdice pluraliza a medonha acusação, e escreve, firme e sólido: "os portugueses", - será que admite, com doce humildade, e contrito remorso, ser, ele também, um invejoso irretorquível, macerado pelo êxito alheio?

Baptista-Bastos in DN

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