sábado, 23 de agosto de 2008

CONTOS DE VERÃO VI

A senhora comendadora

Não via telenovelas, estudava-as até saber descrever as fatiotas envergadas pelos actores há três episódios atrás. E ai de quem a contradissesse.
Também não perdia casamentos reais e só lamentava serem tão poucos que havia anos sem a televisão transmitir nenhum. E então para debitar nomes de infantas e idades de príncipes, nem as conservatórias do registo civil eram mais fidedignas. A sua fonte eram as reportagens profusamente ilustradas com fotos do padrinho de fraque e a madrinha com um horroroso chapéu enterrado até às orelhas, amparando cabecinhas a coroar encharcadas de água benta que as revistas de mexericos publicavam.
Nas longas noites de Inverno e após o comendador recolher aos aposentos, tardava-se ensaiando a colocação pedagógica da voz, pontuando frases com o imprescindível “percebes” reservado aos eleitos quando dão aos outros o privilégio de os escutarem.
E não perdia Verão sem uma visita ao Algarve, hospedando-se no mesmo hotel há trinta anos, onde era recebida com a fidalguia reservada aos clientes habituais, principalmente em épocas de crise como esta em que a maioria opta por férias em casa.
Preparava com zelo o guarda-roupa decorado com vistosas pulseiras e colares de fantasia, reservando para o jantar duas voltas de pérolas, arrematadas no prego por tuta e meia, mas que afagava com o deleite reservado às nobres heranças de família.
Adorava tratar a criadagem, como chamava a quem tinha o azar de satisfazer os seus caprichos, com a altivez condescendente de quem se vê obrigado a explicar com enfado a quantidade de sal na posta do senhor comendador, o tempo de cozedura dos legumes e a confecção de saladas sem cebola devido ao hálito insuportável que provocavam, enquanto polvilhava as exigências com os temíveis “percebes”.
Até ao dia em que o empregado encarregue dos mariscos, farto de ouvir chamar pelo garçon, lhe respondeu que escusava de insistir nos perceves pois já tinham acabado.

Álvaro Fernandes
23 de Agosto, 2008

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