A forma predominante de dominação ideológica já não é o encobrir dos factos, um estratagema bastante primitivo, usado pelas ditaduras. Hoje, a dominação faz-se muito mais pela capacidade de nomear. As pessoas não pensam nas coisas, pensam nos rótulos. Boa parte do jornalismo contemporâneo tornou-se uma grosseira arte de rotular.
À lei que define que os recursos públicos devem ser prioritariamente usados para pagar juros ao sistema financeiro, em detrimento de todos os demais gastos do Estado, rotula-se "lei de responsabilidade fiscal". À prática de cortar gastos essenciais, para sustentar esses mesmos pagamentos, chama-se "disciplina" ou "austeridade", necessárias para formar um "superávit" metafísico (denominado, inteligentemente, "superávit primário"). Ao desmenbramento dos mecanismos de defesa de uma economia periférica e frágil rotula-se "abertura". Aos efeitos do desvio de finalidade das contribuições sociais – recolhidas pelo Estado, conforme a Constituição, para financiar o sistema de Segurança Social – rotula-se "déficit da Previdência".
Os meios de comunicação difundem esses chavões e, pela repetição, incorporam-nos na linguagem comum. Feito isso, não há mais debate possível. Quem pode ser contra "responsabilidade", "disciplina", "austeridade", "abertura", "superávit", coisas evidentemente tão boas? Quem se habilita a defender, a sério, "irresponsabilidade", "indisciplina", "gasta", "fechamento" e "défice"?
Em plena vigência de um regime político que garante liberdade de imprensa, paradoxalmente, quase ninguém tem acesso aos conteúdos das questões. Tudo fica paralisado nos rótulos, usados para bloquear sistematicamente o pensamento.
Essa prestidigitação semântica, que sustenta a ideologia económica dominante, é imensamente frágil. Poderia desfazer-se por meio de um simples acto de renomear. Os pontos de vista seriam automaticamente modificados, por exemplo, se trocássemos o nome da "lei de responsabilidade fiscal" para "lei que define que pagar juros ao sistema financeiro é mais importante do que investir em serviços essenciais". Os exemplos poderiam multiplicar-se.
Só quem controla os meios de comunicação pode nomear e renomear de forma eficaz. O esforço de pensamento, voltado para ultrapassar a rotulagem e penetrar no conteúdo das questões, torna-se a obrigação de quem rema contra a maré. É muito mais fácil navegar no bom senso dos rótulos. Um dos princípios da lógica de Leibniz é o da unidade dos indiscerníveis: se não podemos estabelecer diferenças entre duas coisas quaisquer, devemos admitir que elas são uma só. A luta política que se trava hoje em Portugal e desde há uma geração é apenas uma guerra de grupos pelo controle de verbas e nomeações, que motivam os negócios. O projecto para o país é o mesmo.
http://resistir.info/brasil/arte_de_rotular.html
sexta-feira, 23 de maio de 2008
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1 comentário:
Nem mais! E como pensar dá trabalho lá vamos "cantando e rindo" engolindo o que nos colocam diariamente na televisão, nos jornais, etc, etc, deixando que nos desgovernem a seu belo prazer até que por via de novas eleições saltem outros para o poleiro com intenções semelhantes.
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