quinta-feira, 22 de maio de 2008

MEMÓRIAS ÚTEIS NOS TEMPOS QUE CORREM

A falta de energia pode provocar relâmpagos

Ao chegarmos ao Luma-Cassai, uma das primeiras decepções que tivemos foi a de constatarmos a inexistência de energia eléctrica no estacionamento.

O que me levou, é claro, a enviar a primeira requisição ao Agrupamento de Engenharia de Angola, solicitando o reforço imediato de candeeiros petromax, e o fornecimento urgente de um gerador de energia eléctrica, respectivo quadro de distribuição, cabos de ligação, interruptores, tomadas de corrente, lâmpadas, enfim todo o material necessário para “darmos à luz”...

Confesso que os candeeiros de pressão a petróleo (vulgus petromax), com meia dúzia de bicos ejectores e “camisas” iluminantes de reserva, não tardaram muito a aparecer, no bojo do sempre desejado e bem vindo Mike Vítor Lima.

Este importante colaborador das tropas em campanha, afectuosamente tratado pelo “petit nom” MVL era a coluna periódica de reabastecimento designada por Movimento de Viaturas Logísticas.

Cada vez que cruzava o cavalo de frisa, vindo da picada de Dala, o amigo Mike Vítor Lima era recebido em alvoroço, acarinhado, revistado dos pés à cabeça e interrogado sobre as novidades do mundo civilizado... tão perto mas cada vez mais distante de nós, à medida que o tempo ia passando.

Mas se não houve dificuldade de maior em obtermos alguns candeeiros, de qualquer forma insuficientes, já com o gerador e respectiva palamenta a coisa fiou mais fino.

Passadas algumas semanas, recebi uma airosa nota do Agrupamento de Engenharia, sediado em Luanda, daquelas bonitinhas, em papel timbrado e ainda com um leve cheirinho a ar condicionado.

Nela me pediam, “para se efectuarem os necessários cálculos técnicos, indispensáveis à satisfação do vosso pedido”, o seguinte:

uma planta geral da área, na escala 1/100, e plantas pormenorizadas do “interior do quartel” na escala 1/10 (sic)!

Claro que, após alguns impropérios contra “os meninos burocratas da ZMAC” (Zona Militar do Ar Condicionado), lhes enviei um esboço do nosso acampamento, explicando que o único “quartel” que tínhamos era aquele.

E, passados uns quatro meses, não é que o sempre amigo Mike Vítor Lima nos entrega, em mão, um reluzente gerador Perkins, novinho em folha?

E mais: a acompanhá-lo, vinham 2-sacos de cimento-2, e 4-grampos com amortecedores-4, (OLÉ!) para a respectiva fixação ao solo.

Maravilha das maravilhas: restava-nos esperar que os sapadores abrissem os alicerces, construíssem rapidamente a placa de cimento armado, e nela instalassem, a preceito, o Perkins, assente nos luxuosos amortecedores - não fosse alguma vibração indevida provocar-lhe rupturas de ligamentos nas válvulas, fracturas de meniscos nas bielas ou, pior ainda, brechas irreparáveis no bloco.

Mas, dessa vez, os sapadores não tiveram necessidade de provar a sua competência.

É que, o imponente Perkins, vinha sozinho!

E, sem quadro de distribuição, fios, lâmpadas, etc., não servia para nada. Acresce que, ao conferirmos a respectiva guia de entrega, verificou-se que o número do motor estava errado.

- Aqui há gato! - alertou o primeiro sargento.

E havia mesmo.

A resposta que recebemos à mensagem que dava conta do erro e da falta de palamenta, rezava assim:

“De: Agrupamento de Engenharia de Angola

Para: Companhia de Cavalaria 2720

Assunto: gerador de energia

Texto: em resposta à sua mensagem, informa-se que o gerador Perkins enviado a essa Companhia, se destinava a substituir outro, de uma Companhia de Caçadores, sediada em Cabinda, que se encontra avariado.

Como as trocas e destrocas entre o Leste de Angola e o enclave de Cabinda são susceptíveis de extravio, aumente à carga da sua Companhia, o gerador que recebeu.. Oportunamente será fornecido o restante material requisitado.”

Esperançado em ver o erro corrigido a breve trecho, limitei-me a responder, laconicamente, que cumpriria a ordem, e a pedir que não demorassem o prometido envio do restante material.

Mas qual material em falta qual carapuça!

O tempo foi passando e o Mike Vítor Lima chegando, mas sempre de mãos a abanar.

Por seu lado, os desgastados petromax, que não chegavam para as encomendas, foram avariando sem hipótese de reparação. E, à medida que os candeeiros iam ficando incapazes, lá seguia o angustiado pedido de substituição.

Até à noite em que, à luz do último candeeiro ainda a funcionar, se redigiu e transmitiu a seguinte mensagem rádio:

“Grau de prioridade: RELÂMPAGO

De: Companhia de Cavalaria 2720

Para: Agrupamento de Engenharia de Angola

C/conhecimento a: Comando da ZML; Comando da RMA; Comando-Chefe de Angola

Texto: solicito satisfação imediata das minhas requisições números tais e tais, de tantos de tal, enviadas a esse Agrupamento de Engenharia sem qualquer resultado”.

É claro que, a enumeração de todas as requisições por satisfazer, tornava a mensagem suficientemente extensa para provocar uma transmissão demorada.

Imagine-se a bronca!

Durante o tempo necessário para ir transmitindo, em cadeia, a nossa mensagem emitida do Luma-Cassai, até à Fortaleza de S. Miguel, onde se encontrava instalado o Comando-Chefe, em Luanda, a cerca de 2 mil quilómetros, todas as redes rádio militares ficaram por nossa conta.

O grau RELÂMPAGO obriga a interromper todas as comunicações em curso, até a mensagem com essa prioridade ser transmitida.

E, o certo é que, uma escassa semana depois do “RELÂMPAGO” provocado pela falta de luz, aterrou na nossa improvisada pista de aviação uma avioneta DO-27 que transportava unicamente.... uma remessa de petromax!

Quanto ao garboso mas inútil Perkins, lá continuou sorumbaticamente coberto por um pano de tenda.

Às escuras.

2 comentários:

Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) disse...

De Cabinda ao Leste é qualquer coisa como da Irlanda à Itália em termos topológicos. Uma pequena desorientação!...

A política dos petromaxes inseria-se já na luta contra o aquecimento global através da redução dos consumos, procura de fontes alternativas e deitar mais cedo. Numa zona onde chega a anoitecer às cinco da tarde jogar king era com o borralho das lareiras.

Prova-se também que os nossos serviços de espionagem já nessa altura viam filmes sobre as guerras do Golfo e do Iraque. Não me admirava nada que perguntassem se lá havia GPS e telemóveis. Com os burocratas tudo é de esperar.

Quero mais.

zigoto disse...

Meu "velho Perdido"
Também eu espero mais do que passámos juntos por aquelas bandas... e não só.
Por isso te vou (re)enviar agora o convite para autor destas cacimbadas.
Nem penses recusar.
Se te baldares, quando te puser as mãos...desgraço-te.
Abração.