terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

POESIA PORTUGUESA ERÓTICA E SATÍRICA #7

JOÃO RUI DE SOUSA

Poeta e ensaísta português, nascido em Lisboa em 1928. Concluiu o curso de Ciências Históricas e Filosóficas da Faculdade de Letras de Lisboa como trabalhador estudante.
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Estreou-se nas Letras na revista Cassiopeia que fundou em 1955 com António Ramos Rosa, José Bento e outros, e de cujo núcleo directivo fez parte.
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Publicou Circulação (1960), A Hipérbole na Cidade (1960), A Habitação dos Dias (1962), Meditação em Samos (1970), Corpo Terrestre (1972), O Fogo Repartido (reunião dos livros anteriores, com iné­ditos, 1973), Palavra Azul e Quando (1991), Enquanto a Noite, a Folhagem (1991), Sonetos de Cogitação e Êxtase (1994), Destinação do Corpo (1996), Respirar pela Água (1998), Concisa Instrução aos Nautas (1999), Os Percursos, as Estações (2000). Em 2002 surgiu a Obra Poética 1960­-2000. Posteriormente publicou Obstinação do Corpo (2003), Lavra e Pousio (2005) e Quarteto para as Próximas Chuvas (2007)
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Sobre João Rui de Sousa escreveu Fernando J. B. Martinho em Biblos-Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa (vol. 5, Lx., 2005, cols. 214-217): «A sua poesia, no essencial, permaneceu fiel às duas linhas que podiam perceber-se num ensaio que publicou no número único dessa revista [Cassiopeia] sob o título «A angústia e o nosso tempo», muito em sintonia com o espírito das filosofias da existência, então com grande aceitação junto da nova geração literária: por um lado, uma defesa da "fraternidade", já vincada pelo realismo social; por outro, o não abdicar da singularidade, num tempo em que as esperanças utópicas se mostravam já em franca regressão. O "homem total" que aí se defende corresponde a um homem não mutilado, quer da sua ligação à polis, quer das exigências inalienáveis da sua individualidade. No plano poético, tal implicará a conjugação de dois vectores, o ético e o estético, e a abertura a uma reflexão que problematiza o estar no mundo. O gosto pela reflexão manifesta-se não apenas na prática poética de João Rui de Sousa, mas também no exercício de uma persistente e importante actividade crítica e ensaística que vem até aos nossos dias (...)».
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A poesia de João Rui de Sousa é incisiva, arrebatada e disciplinada. Denota uma clara influência do Movimento Surrealista, onde pontificava Mário Cesariny de Vasconcelos, cuja revolução poética, de amplitude universal, criou uma nova estética que dominou a poesia portuguesa durante os últimos anos de 60 e toda a década de 70 do século XX, influência que perdura ainda hoje. Nos seus mais recentes livros, a sua poesia enriquece-se com um surpreendente formalismo que lhe requinta as ideias e lhe imprime indiscutível originalidade.
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Em Dezembro de 2008 foi-lhe entregue o Prémio de Poesia Teixeira Pascoais, instituído pela Câmara Municipal de Amarante, pelo seu livro “Quarteto para as Próximas Chuvas”. Na cerimónia da entrega, António Cândido Franco, em representação do Jurí que decidiu por unanimidade, fez a apologia da obra de João Rui de Sousa, dizendo tratar-se, aos 80 anos, de um dos mais importantes poetas portugueses da actualidade.

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A TÉCNICA DO FRIO

Subitamente encurvo o gesto
- sei onde vou com estes dentes.
Subitamente um trapo, um enxoval de sexo,
um bric-à-brac súbito, mas por dentro.

Sigo a rota gloriosa desta curva
até qualquer tapete, qualquer lama,
qualquer papel-metal já roído.
Até me socorrer do pente-arame.
Até já não me ouvir no meu ouvido.

Ilustro com o século dos resíduos

………………………toma lá dá cá
………………………dá cá a hóstia

Os instantes mais compridos.

Encurvo ainda mais cada manobra:
Um olho em cada estômago
…………………………….....o sexo
………………………………………....a garrafa
E fico.

Peço mais gelo e deito-me de costas.
Sou todo perna com um céu comprido.

SÃO PEÇAS BEM UNIDAS DESUNIDAS

As peças do teu corpo bem ligadas
desligam-se para os gestos mais perfeitos:
são joelhos e coxas separadas,
é desalinho de ombros e de seios.

E os lábios também vão desordenados…
e os infindáveis braços sobrevoam-se…

E nesses movimentos sem regresso
em perdidas peças transviadas,
eu também me perco e sou um voo
muito além de tudo o que entrevejo
nesta ondulação onde balouço…

São peças bem unidas desunidas
pelo caudal das sedes debatidas
em lençóis de sumo rumoroso.
In “Obstinação do Corpo”

POEMA CONTÍGUO AO ÓDIO

Que gelado sopro nos agita
do lado de dentro das ruas?

Que rápida vertigem nos domina
Nesta agudíssima manhã?

Este vento que nos queima estas veias mais quentes
estes longos minutos que sacodem o rosto
estes ponteiros gigantes que nos marcam os séculos
estes rios de sal que abrem sulcos nos ossos.

Esta raiva que nos cortas estas lâminas nos lábios
estes vidros de silêncio que nos enchem a boca
estes deuses que sorriem estas lágrimas mais puras

estes grandes traços negros de trânsito impedido.

CONSELHO AOS CRENTES

Não queirais entrar na dor que se constrói
de verso a verso, de sílaba a sílaba,
num fogo que se expande e adere à boca,
às páginas, às estrofes e às palavras,
queimando todo o corpo e a alma desavinda
ou aspergindo a voz da maldição
(a nossa e a do mundo)
na trémula incerteza de si mesma.

Adoradores de fé qualquer (terrena
ou transcendente) que tudo abarque
e salve e concilie:
não quebreis o encanto com tais nuvens
ou torturas de ardor e entendimento;
não procureis a lápide das dúvidas
colhidas em estações de desalento;
não vos afasteis do vosso rumo
de confiante e pendular porfia.

Não vos deixeis – ó crentes, cujo rosto
tem a candura de um áureo chamamento –
cair na tentação da poesia!

VIDA E MORTE DAS PALAVRAS

São vivas quando
o coração do vento amadurece
e a voz vem de repente
e não se esquece
de estremecer as trevas
ou de roer as malhas
da rotina
ou de dar lenha e fogo
(matéria inesperada
e sibilina)
a um barco que arrefece.

São mortas quando
a morte nelas cresce
- com os seus cabelos ralos,
suas ramagens crespas, desgastadas,
seus ossos cabisbaixos
rolados sobre o nada.
São mortas se não queimam
a limalha sobrante – esse pó
de cães exaustos, de dias
fatigantes –
e em podridão se instalam.

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