quinta-feira, 19 de junho de 2008

Novo livro de Mia Couto


O jogo de mentiras é a matéria de 'Venenos de Deus Remédios do Diabo'. A rir. Uma conversa pode começar assim. Nessa linguagem, a do riso, que Mia Couto considera ser a primordial, mas que se perdeu. O escritor está sentado a uma mesa entre o cheiro a novo das instalações da Leya e ao lado tem um caixote de livros para assinar. São exemplares de Venenos de Deus Remédios do Diabo (Caminho), o seu mais recente romance, aquele em que o autor moçambicano decidiu bater a porta a outras personagens que não as que lhe surgiram no início. "Os meus livros eram um pouco aborrecentes, muito ramificados e eu tinha dificuldade em lidar com personagens novos. Algum me batia à porta e eu deixava entrar toda a gente", ri. Mia Couto ri disso, dessa indisciplina que quer domar, e sorri perante a tarefa que lhe deram. Assinar livros enquanto fala. "Como se pudesse! "Sou o melhor vivo do que se costuma dizer: um homem, ao contrário das mulheres, é incapaz de fazer duas coisas ao mesmo tempo." E ri outra vez. Por isso o escritor fala e os livros ficam lá, no caixote. O mote é o seu 23.º romance, um livro sobre o tempo - o passar do tempo - e a capacidade de mentir, o jogo de mentiras, o encenar para poder existir. E é também sobre a morte e o amor numa terra imaginária, Vila Cacimba, lugar que "só existe por via da mentira", onde quem chega também mente; metáfora de outra cacimba que ora revela ora adensa mistérios e mentiras e enigmas à volta de uma família. "Há mais coisas a descobrir numa família do que numa vista a Marte", diz Mia Couto citando de cor o autor israelita Amos Oz. "Este livro fala sobre a quantidade de segredos que pode ser desvendada a partir desta incursão no universo familiar. Qualquer que seja a família, esconde sempre segredos", afirma o escritor no seu falar devagar, pausado, quase sussurro como quando diz que só há pouco começou a sentir que o tempo passa. Por isso, este é um livro pessoal. "Pela primeira vez dei-me conta da idade que tenho." Foi aos 50 anos, na mesma altura em que lhe aconteceu ser avô. É assim que a angústia perante o tempo e a morte de Bartolomeu Sozinho, o velho da narrativa, que tal como Mia não que está a morrer e tão depressa se quer salvar como deseja ser entregue à morte, também é a sua, a de Mia. "De repente tropecei numa coisa que nunca existiu para mim: o tempo. Sempre me senti sem idade e um bocadinho irresponsável em relação a essa coisa de ter de prestar contas aos dias. Eu estava velho. Tinha a idade daqueles a quem chamava velhos na minha adolescência e perguntava, "porque é que isto me acontece a mim, logo a mim, ter 50 anos? Eu, tão novo!"E é por isto que este livro está cheio de tempo. No drama, na ironia com que ri do trágico - "nas s culturas africanas é preciso não levar muito a sério as coisas pesadas, por se acreditar que isso atrai maus espíritos; há uma atitude de superstição em levar muito a peito o que é trágico" -, na duração de uma mentira, no tecer dos mistérios que compõem uma vida. Mia Couto tem 50 anos. E sobre o homem de 50 anos escreve: "aos 50 pensamos com suficiente sabedoria já não ter ideias." Acontece-lhe? "Penso um bocado assim. A sabedoria passa por se ter sentimentos, sensibilidades. Sobrevalorizamos aquilo que chamamos a ideia, como se fosse a capacidade de pensar e de produzir abstracções e sobretudo a capacidade de produzir revelações do mundo, como se as coisas se pudessem reduzir a isso. Acho que há coisas que são intraduzíveis. Pensar com o corpo inteiro, pensar com o coração e não e pensar que o cérebro é uma espécie de mecanismo de reflexão total. De vez em quando temos uma sintonia por via da intuição, por via de uma coisa que não sei se tem nome e se calhar é mais interessante do que a hegemonia do pensamento." Se há coisas que não lhe apetece levar muito a sério, essa é uma, numa altura em que quer libertar-se de um início de carreira que durou mais de vinte romances. Quis que este fosse diferente, "de outra maneira já não me apetece escrever mais". E foi diferente até na criação. Sem dor, sem o magoar dos anteriores, mas com a mesma tristeza. Não é angústia, não é solidão, porque sente as personagens como companheiros, com a força de serem companhia... Hesita. Talvez haja solidão, mas não a sente como peso. "Desde miúdo diziam que eu era muito apto e tendente para a solidão. Os meus pais e os meus amigos queriam tirar-me daquilo e eu estava tão bem assim. E a tristeza também. A tristeza é o meu território, mas a tristeza nunca me derrotou. Acho que há uma janela para as coisas nessa condição de triste. Hoje temos medo desse sentimento, como se fosse uma doença." E nesses momentos tristes é possível rir, soltar uma gargalhada. "Só produzo em estado de tristeza, mesmo que esteja a produzir ironia. Os da minha casa entendem bem isso e protegem-me nessa tristeza como se fosse um estado de graça. "Deixa-o lá estar triste mais um bocadinho." É como se fosse um sono; como se ali houvesse uma porta para sonhar e chegar a uma espécie de intimidade com coisas a que não se chega de outra maneira."

Isabel Lucas in DN

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