sexta-feira, 20 de junho de 2008

Textos de Filosofia Política (7)


AS SOMBRAS TECNOCRÁTICAS MODERNAS E PÓS MODERNAS DO POSITIVISMO COMTEANO

A filosofia positiva é uma construção dogmática que interpreta a existência humana como fruto de um determinismo intelectual implacável cuja fonte parece residir na dialéctica que o cérebro humano estabelece com a experiência histórica. Decifrei o seu núcleo duro como um monismo científico que contém os elementos cruciais do ideário tecnocrático
Depurada de componentes ambíguos e periféricos a sua proposta de uma condição humana subjugada pelas directivas colhidas dos saberes positivos parece cristalina. A filosofia de Comte responde ao paradigma dos sistemas acabados, monolíticos e estratificados conduzidos por uma elite intelectual que Platão arquitectou classicamente há mais de dois milénios. Só que os sábios governantes comteanos não querem saber do mundo das formas e da alma que o discípulo de Sócrates representava como a realidade e objecto do verdadeiro saber ao alcance da razão. Ao invés, o filósofo positivo trata esse mundo como uma fantasmagoria do imaginário metafísico, considera que a realidade vive cá fora ao alcance dos sentidos e que os seus sábios são talentos ocupados na produção de conhecimentos e práticas refractárias a tudo quanto seja estranho aos domínios da tecnociência. Assim, descontados os frémitos religiosos e virtudistas, o discurso lógico do positivismo e muitos dos ideais que encerra perfilam-se muito claramente como a antecâmara filosófica de um modo de pensar, viver e governar que muitos consideram dominante nas sociedades pós-industriais.
De facto, o domínio da racionalidade instrumental de filiação clássica e positivista gerou o culto do útil, do efémero e do conservadorismo abúlico em ambiente social polarizado no consumo. Obliterando os espíritos através de uma série de efeitos alienadores, pulverizando as saídas revolucionárias clássicas pela sua assimilação a utopias fora de moda, anulando os efeitos de distanciação da arte e os seus atributos corrosivos da ordem, estandardizando a linguagem, transformando a sensualidade em sexualidade pública, pornografizada e liberalizada, insinuando que os objectivos realmente humanos estão definidos e sob a alçada exclusiva da ciência e da técnica, a tecnocracia sustentada pelo enormíssimo poder formatador dos media, incrustou o positivismo comteano nos pluralismos ocidentais e tornou-o terrivelmente eficiente.
Despojado dos componentes totalitários, das ideias ultrapassadas e das nuances ridicularizáveis a filosofia positiva vai asfixiando as sociedades sem o ónus da unicidade ideológica. Na verdade, alimenta-se de saídas existenciais falsas protagonizadas por adversários políticos formalmente apresentados como alternativas reais. Sob rótulos e promessas diferentes as elites políticas circulam no aparelho de Estado para reproduzir o mesmo sistema de vida. O jogo social das escolhas ocorre em ambientes sociais pragmáticos e economicistas onde o pluralismo político é mais uma forma-máscara do que um espaço alternativo de projectos qualitativamente diferenciados.
Libertos de clericalismos e absolutismos monárquicos pela razão enciclopédica que descodificou as perversas irracionalidades dos poderes sacralizados do «ancien regime» e criou os fundamentos racionais da Grande Revolução, os sistemas sociais emancipados pela razão especulativa foram-se deixando algemar pela razão instrumental que mantém o formalismo dos regimes plurais livres e democráticos mas construiu uma cultura maquínica e consumista que neutralizou as possibilidades do pensamento alternativo. A secagem das fontes do criticismo e a absorção dos contrários pelo sistema que os domesticou mesmo quando os «deixa» apresentarem-se como adversários, eliminaram a alma criadora e o poder de choque dos cidadãos.
Nesta atmosfera pós-moderna, o sentimento de impasse não parece dissipar-se com soluções e promessas de soluções técnicas, não encontra remédio nas ideologias clássicas e não consegue definir pensamentos e estratégias de saída.
Nesta perspectiva, reflectir sobre a tecnocracia é pensar o mundo contemporâneo como a derrota do futuro idílico que o nosso passado iluminista imaginou resultar do exercício da razão nos campos da filosofia, da ciência e da técnica em sociedades construídas sob o lema da tríade de ouro demoliberal: liberdade, igualdade e fraternidade.
Afigura-se-me incontestável diante da análise do «tipo ideal» comteano de sociedade que nele figura a substância teórica e ideológica dos pressupostos e das aspirações do «tipo ideal» tecnocrático que, como sistema real de poder e de cultura tem sido obrigado a mitigar-se na armadura politica e intelectualmente pluralista das democracias de tipo ocidental. Mesmo assim, comprimidos por lógicas democráticas e confrontados com modos de conhecimento baseados na fé e na especulação que subsistem no ocidente sem poder determinante, os grupos tecnoburocráticos nacionais e internacionais parecem assenhorear-se progressivamente das alavancas decisórias a partir do uso instrumental de saberes positivos pluridisciplinares na gestão dos assuntos públicos e privados.
Desenvolvendo-se e reproduzindo-se num contexto de sentido culturalmente construído por uma razão que se fixa acrítica e obsessivamente na função instrumental e abdica da geração de alternativas próprias dos processos «realmente» críticos e emancipatórios, as sociedades desenvolvidas organizadas por este tipo de racionalidade são a expressão presente e possível da utopia comteana: sombras do radicalismo cientifista fixado pela filosofia positiva.

Valter Guerreiro

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