terça-feira, 24 de junho de 2008

Textos de Filosofia Política (8)


AINDA MARCUSE E OS TEMPOS TECNOCRÁTICOS

A contribuição de Marcuse é também muito importante no que tange a Hegel e ao sovietismo.
A análise a que Marcuse submete a sociedade industrial avançada é progressivamente aclarada nas suas obras”Razão e Revolução” de 1941 e”Cultura e Sociedade” de 1965. Mas é confrontada à psicanálise e ao movimento comunista que o marcuseanismo oferece maior interesse.
No final dos anos 30 vemos esta confrontação em relação à obra de Fromm e a sua psicanálise crítica da sociedade. Em “Eros e Civilização”, de 55, servem-lhe de base os textos freudianos sobre a cultura: tenta situar historicamente a sociedade repressiva no pensamento freudiano e desocultar o potencial crítico que encerra sob a capa de seu pessimismo desalentador. No posfácio de “Eros e Civilização” e contra Fromm, mostra que ele e os adeptos do culturalismo ao unir a estrutura institucional à estrutura económica, tornam-se defensores do status quo, abandonando a crítica radical. Com Freud, na mesma obra, afirma que a história do homem é a história da sua repressão: a cultura é responsável pela coacção da natureza instintiva do homem mas é desta coacção que resulta a possibilidade da vida social. É na conversão do seu estado institucional primitivo em estrutura institucional socializada que o animal cede lugar ao humano mas será na sublimação depressiva dos instintos e na reconfiguração conexa que a civilização autoritária dará lugar a uma civilização livre. A vertente tecnológica do discurso marcuseano é extremamente importante no seio do debate intenso que este assunto merece no domínio das ciências sociais. Nesta matéria o pioneirismo e o classicismo estão com Weber que introduziu o conceito de racionalidade para definir o modo de produção capitalista, a ciência e o direito burguês e a dominação burocrática: a racionalização significa a ampliação das esferas sociais submetidas ao critério de decisão racional ou, dito de outro modo, da hegemonia da razão instrumental na esfera da existência.
Para Weber a hegemonia da racionalização implica a edificação da ciência e das tecnologias e técnicas associadas como o paradigma do pensamento e da verdade e, assim, como o foco de uma nova legitimidade que de passagem derruba as outras: tradicionais e afectivas ligadas quer à exaltação do costume quer da religiosidade: a secularização e o desencantamento das cosmovisões orientadoras da acção que antes impregnavam os universos culturais na sua totalidade, é o reverso da racionalidade ascendente da vida social. Foi na Escola de Frankfurt que esta temática weberiana mas de tradição muito antiga, ganhou grande relevo: ocorreu naturalmente e no início na pátria de Weber pouco depois da sua morte e a crítica da tecnologia e dos seus efeitos devastadores na cultura foi subsumida na crítica da razão instrumental. Adorno e Horkheimer muito resumidamente, equacionam a instrumentalização da tecnologia. Isto é, o seu uso sob a égide da razão instrumental, como uma forma de dominação que opera por intermédio do controlo dos objectos e através desse controlo provoca neles efeitos letais: viola a sua integridade, suprime-os e destrói-os. Marcuse tomando como ponto de partida a análise weberiana da racionalidade, critica-a e vai mais longe desenrolando uma tese sobre a irracionalidade da racionalidade que assenta na ideia de que os efeitos das técnicas e das tecnologias sobre os homens e sobre a natureza são irracionais no quadro sociopolítico das sociedades industriais avançadas e dado que tais efeitos não são o resultado exclusivo de vontades e interesses exteriores à concepção das técnicas e tecnologias mas estão já presentes na filosofia manipulatória e exploradora dos homens e da natureza que é imanente a esse tipo de racionalidade que é razão instrumental, então esta razão só formalmente é racional porque em substância é irracional. Com efeito, o discurso marcuseano sobre a técnica, a tecnologia e a razão instrumental é erguido sobre o conceito formal de racionalidade weberiano extraído da noção de racionalidade como relação meio/fim usada na prática do empresário capitalista, do trabalhador industrial, no abstraccionismo jurídico e no funcionário e tradutora do modo característico da ciência e das suas emanações técnicas.
A tese marcuseana é de que à ciência moderna subjaz uma tendência política oculta e ideologicamente marcada pelo desejo de usar homens e natureza de uma forma utilitária que se esconde muitas vezes no saber desinteressado, na imagem da neutralidade e na ideia de progresso: é uma razão de facto instrumental porque instrumentaliza homens, objectos, natureza e organizações para impor e reproduzir sociedades cuja estrutura e mecanismos servem os interesses particulares das classes dominantes. Assim Marcuse formula a sua crítica a Weber frisando que o conceito de racionalidade é uma fórmula descritiva da razão técnica que e ideológica na medida em que não só a sua aplicação mas também as suas raízes são dominação metódica, científica, calculada e calculadora sobre a natureza e sobre o homem. Na matriz ideológica da ciência e das suas aplicações práticas a imagem de uma natureza a manipular, a fruir e a subtrair de recursos para alimentar uma máquina económica ao serviço do lucro encontra-se desde logo objectivamente a produção e reprodução de relações de exploração como, subjectivamente, o desprezo pela natureza e pelo homem tratados como objectos de cuja instrumentalização derivam o lucro e o poder. Assim a razão técnica é uma racionalidade formal que esconde toda uma irracionalidade de motivações, representações e fins que dominam uma sociedade irracional porque repressiva, mascarada e ostensivamente violenta a um tempo, produtora de desigualdades e de coisas supérfluas e alienadora do homem e da natureza. Isto significa que a tese sobre a irracionalidade da racionalidade ou, dito de outro modo, sobre a ideologia manipulatória, repressiva e desumanizante inerente à técnica e à tecnologia reside já nos interesses que se inscrevem no seio da razão técnica e não lhe são atribuídos durante ou após a sua aplicação e a partir de fora: eles já estão inseridos na própria construção da ciência e do aparelho técnico, sendo a técnica, em cada caso, um projecto social inscrito num determinado tempo, e por isso histórico, no qual se projectam o que uma sociedade e os interesses nela dominantes pensam fazer com os homens, com as mulheres, com as coisas, com a cultura e com os recursos da natureza. O que esta razão técnica faz é ocultar a sua irracionalidade manuseando tecnologias que no âmbito da gestão da psique humana produzem efeitos poderosos de alienação sem violência física: a democracia, os mass media, a massificação e priorização do consumo, a indústria da cultura, a indústria do lazer e o trabalho são faces do poliedro social desenvolvido nas quais a tecnologia da dominação científica no quadro da razão instrumental deixa na sombra e ao mesmo tempo vai destruindo o homem pela manipulação repressiva da sua libido.
Ao dominar racionalmente, o explorador e opressor ocultam-se parecendo que não oprimem nem exploram e, o escravo, tanto mais escravo quanto menos sabe que o é, subjuga-se docemente ao seu opressor. Quer isto dizer que a racionalidade da dominação mede-se pela manutenção de um sistema que pode permitir-se converter em fundamento da sua legitimação o incremento das forças produtivas associado ao progresso técnico-científico embora, parodoxo dos paradoxos, o estado das forças produtivas seja justamente, medidas as renúncias e incomodidades impostas aos indivíduos, aquilo que as torna a elas e aos seus efeitos desnecessárias e irracionais. Esta repressão desvanece-se na consciência da população face à legitimação desenvolvimentista e democrática do processo racionalmente gerido. É nesta cultura gerida pela razão instrumental que se gera o homem unidimensional que se vai esquecendo da natureza e da sua humanidade no meio do carrossel tecnológico. Naturalmente que a ciência e a técnica associada, cuja representação do mundo, conceitos e métodos apoiou, projectou e modelou o mundo irracional em que vivemos em nome de uma racionalidade formal, reducionista e falsa, têm que ser mudadas (a razão instrumental e a ciência e a técnica conexas devem dar lugar à razão sensitiva, razão sensual?). Esta ciência cuja hierarquia racional se liga à hierarquia social e por isso legitima a desigualdade e a submissão tem que ser profundamente reformulada na base de uma reformulação da ideia de progresso, da ideia de natureza, da ideia do homem e da ideia da sociedade.
Apesar de se constituir no mais ousado teórico da Escola de Frankfurt, no sentido de que assentou sempre uma ponte entre a teoria e a revolução, Marcuse é um pensador da matriz da Teoria Crítica que continua a ser uma das influências mais marcantes do nosso século que em parte se deve à sua forte presença em muitos domínios de estudo e, nalguns domínios, a sua força tem-se prolongado invulgarmente: é o caso da cultura e da comunicação onde a Teoria se começa a robustecer nos finais de 30. Adorno e Horkheimer foram os pioneiros e na década seguinte os trabalhos nesta área ainda foram mais significativos.
Como é natural, pode contestar-se a validade da TC no presente, pode indagar-se sobre a sua adequação às formas multifacetadas do nosso universo simbólico e a uma experiência entretecida na circulação acelerada de bens culturais nas redes de comunicação que ocupam o nosso quotidiano. A TC não é propriamente uma teoria unitária dado que é preenchida por várias sensibilidades e mesmo divergências fortes dando voz a uma rica pluralidade mas aqui interessa considerar as posições dominantes: as teses consagradas que acabaram por ter o estatuto de versões oficiais da TC. Há um núcleo congregador verdadeiramente representativo da TC e que se desdobra numa dupla crítica: crítica da realidade social e crítica das ciências sociais numa perspectiva de denúncia e superação de um conhecimento.
Valter Guerreiro

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