sábado, 28 de junho de 2008

O rei manda



Para levar o processo às últimas consequências, o Conselho Disciplinar entendeu necessário incutir nos alunos o culto da delação.
No dia seguinte, foi lido, em todas as turmas, um aviso sobre os perigos do encobrimento e os riscos da cumplicidade. Os jovens foram aliciados a prestar informações, com promessas de menção honrosa, no registo disciplinar.
Ufano perante a perspectiva de novas honrarias, Heliodoro correu para a reitoria.
Antes de lá chegar, porém, a esperança liquefez-se.
Da profundidade abissal do subconsciente, emergiu a memória ultrajante do banho forçado, a esbracejar numa aflição de afogamento, salvo in extremis pelo Temudo.
O mulatão  como ele lhe chamava  frequentava, com à-vontade, os pescadores da ilha, refastelado na areia, digerindo,à sombra das redes, piroadas com óleo de palma, comidas à mão.
Qualquer tentativa de aproximação esbarrava num linguajar que, segundo Heliodoro, “um poliglota que se preza se recusa a aprender. Se entramos em concessões, não tarda a que sejamos interpelados pelos gorilas da floresta do Mayombe. Já nos basta suportarmos a pronúncia indígena e, para ensinar os negros a obedecer, em português, o cavalo-marinho é um tradutor eficaz.
Mas como hei-de vingar-me das afrontas do mulatão, se lhe devo a vida? O estafermo nada como uma garoupa, treinado em mergulhos de aperitivo, para enfiar a mão mal educada no pirão dos pescadores.”
Heliodoro tinha razões para sentir tais pruridos de consciência.
Aos fins-de-semana, moços de sangue na guelra extasiavam meninas, estiradas ao sol, com audácias viris. Tirado à sorte, na praia, lançava-se o mandador às ondas, gritando Rei-manda! E caprichava quanto podia, procurando que nenhum dos competidores conseguisse igualar a espectacularidade da acrobacia.
O corrupio de saltos-mortais e piruetas, voos empranchados, mergulhos encarpados, terminava com o vencedor empoleirado no vértice da pirâmide humana, formada pelos adeversários derrotados.
Não havia, porém, apelos nem dichotes capazes de arrancarem Heliodoro ao seu elegante cerimonial. Do gracioso guarda-sol com franja de berloques ao calção de banho, todo o equipamento de praia se apresentava regiamente em azul e branco, excepto o par de óculos escuros. Na toalha, de fofo pano turco, via-se um majestático Neptuno, empunhando um ceptro tridente. A pala do boné branco era encimada por uma coroa bordada em lã azul. E até o frasco de óleo de coco, utilizado como bronzeador, era de vidro azulado.
Heliodoro consultava frequentemente o relógio, por forma a cronometrar rigorosamente o tempo de exposição ao sol que alternava, a cada quarto de hora, com idêntico período de recolhimento à sombra. E, de sessenta em sessenta minutos, banhava-se rapidamente, com água até à cintura.
O desastre aconteceu por culpa do Zé Augusto, provocador.
 Então o senhor barão não obedece ao rei?
A indiferença desdenhosa de Heliodoro não resistiu, ao ver posta em causa a sua arraigada fidelidade monárquica.
 Isso, nunca! Se é o Rei que manda cá vou eu.
Tal foi o balanço da corrida, que ultrapassou a primeira linha de rebentação e, quando se arrependeu da temeridade, era tarde demais. Parecia um prego a afundar-se.
Não fosse a braçada ritmada de Temudo rebocá-lo para terra e teria naufragado no pavor do pé perdido, esbracejando em adeus à praia, despedindo-se da vida.
“Mas, pensando melhor, não devo nada a mulatos encardidos. Se o Temudo já tem a pele mais clara do que a mãe, pode agradecê-lo à minha raça. Então não foi um varão europeu, forçado, pelo rigor do clima, a despender calorias na esteira indígena, quem purificou o sangue acastanhado do mestiço?
O credor sou eu! Ajustarei contas, apresentando pesada factura a reitor. E já.”
A entrevista foi demorada. Atenciosamente interessado, o reitor solicitou esclarecimentos e provas. Empolgado pela transcendência do seu papel, Heliodoro desatou a língua, detalhando minúcias. Citou, nominalmente, os intervenientes da peripécia e reconstituiu episódios, destacando a sua acção pessoal.
Dolorosa surpresa!
Em vez da esperada menção honrosa, alcançou a porta em bicos de pés, pendurado por uma orelha onde ressoava a ira do reitor.
 Ah! Andas feito com eles, malandro!
Temudo foi punido com oito dias de suspensão às aulas e o nome dos restantes circulou pelas turmas. Num aviso, eram acusados de cumplicidade e classificados de mal comportados.
Heliodoro ficou inconsolável. E, nas eleições para chefe de turma, só teve um voto. O seu.
As agruras de Heliodoro não terminaram aqui.

Álvaro Fernandes in “Berços de renda, enxergas de trapos”, Em Marcha, Lisboa 1981

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