segunda-feira, 2 de junho de 2008

A arte de bem plantar morteirete


De como a arte de bem cavalgar toda a sela, na nossa companhia de cavalaria apeada, foi transformada na arte de bem plantar todo o morteirete

O simples facto de a CCAV 2720 ser uma companhia independente, era prenúncio de borrasca.

Com efeito, não só ficaria entregue a si própria, sem o “manto protector” de um batalhão e o apoio da respectiva companhia de comando e serviços, como iria, com certeza, parar a “um buraco”.

O que, na gíria castrense da época, significava ser colocada no mato, bem afastada das mordomias da ZMAC – leia-se Zona Militar do Ar Condicionado...

Mas isso era o menos.

Com a idade que tínhamos na altura, pouco nos custava suportar a incomodidade. Aliás, éramos preparados e treinados para isso mesmo.

O que nos preocupava era o facto de prevermos – muito avisadamente – que o teatro de operações onde iríamos actuar não seria dos mais fáceis.

Por isso mesmo - e no intuito de nos prepararmos tacticamente o melhor possível - solicitamos e fomos autorizados a ministrar, em tudo o que pudéssemos, instrução reservada à especialidade de operações especiais.

Daí, por exemplo, o facto de optarmos por grupos de combate articulados em 6 equipas de 5 homens – incluindo a equipa de comando – em detrimento dos pelotões convencionais formados por 3 secções.

Quase uma década após o início da guerra, já tínhamos percebido que, em contra-guerrilha, tal orgânica, mais leve e melhor enquadrada - visto cada equipa de apenas 5 membros obedecer ao comando de um chefe - oferecia vantagens apreciáveis em relação aos pelotões de atiradores.

Além disso, facilitava o melhor conhecimento dos homens entre si e reforçava o espírito de corpo, que tão importante é para as tropas combatentes.

Já Napoleão Bonaparte dizia que, em combate, preferia comandar quatro amigos do que quarenta conhecidos!

Também por isso, permitiu-se que as equipas escolhessem livremente os seus elementos e mais: se articulassem em grupos de combate e escolhessem os furriéis e alferes para os comandar. Somente não puderam escolher o comandante de companhia, porque só havia um capitão...

Não surpreende, portanto, que tivesse-mos prestado atenção especial ao tiro instintivo, por forma a habilitar o pessoal para se defender com rapidez e eficácia sempre que fosse atacado. Recordo, a propósito, o que me aconteceu um dia na carreira de tiro de Santa Margarida:

Com alvos numerados, e colocados a 50 metros de distância, cada atirador seguia à minha frente, deslocando-se em paralelo à linha dos alvos. De repente, eu indicava um número e, o atirador tinha de disparar, imediatamente, dois tiros consecutivos para o alvo indicado.

Com armas automáticas, como é o caso da G-3, o segundo tiro só é possível após largar o gatilho e voltar a premi-lo.

Acontece que, o soldado a quem estava a dar instrução, carregou no gatilho a primeira vez e, sem o largar, continuou a premi-lo, esperando que a arma disparasse segunda vez. O que, obviamente, não aconteceu.

Como eu o censurasse por só ter disparado um tiro, virou-se para mim exclamando:

- A arma encravou!

E, para que não restassem dúvidas, soltou finalmente o gatilho e voltou a premi-lo, com a boca do cano a dois palmos da minha cara. O estrondo foi de se lhe tirar o chapéu!

Claro que, se me tivesse atingido, não estaria aqui a recordar este episódio. Mas não me safei de ficar com as pestanas do olho esquerdo chamuscadas, e o olho mais vermelhinho do que os dos coelhos.

Poder-se-á dizer que o referido atirador era especialista na arte de bem assustar toda a tropa! Ou não fosse a 2720 uma companhia de cavalaria e ele desconhecesse a obra a que D. Duarte deu o título: “A arte de bem cavalgar toda a sela”!

Quem também demonstrou que havia estudado afincadamente tão insigne tratado de cavalaria foi o Alferes Maia. Se não, vejamos.

Numa emboscada que montamos nas margens do rio Cassai, ao tentarmos capturar um elemento em fuga, fomos alvejados da outra margem, quando nos encontrava-mos na chana e já muito próximo do rio.

Sem perder tempo, o Ranger Zé Maia, especialista em tiro instintivo de morteirete, não deixou os seus créditos por mãos alheias.

Sentou-se no chão, apontou o tubo do morteiro para o sítio de onde provinham os disparos, deu-lhe a inclinação conveniente para atingir a zona pretendida, e disse-me:

- Meta a granada agora!

Sem me fazer rogado, introduzi a granada na boca do tubo, ouvimo-la escorregar pelo tubo abaixo e, PUM!

Lá vai ela!

Só que, como o terreno era pantanoso, não suportou o recuo do tubo provocado pela saída da granada.

E o Zé Maia ficou a olhar para as mãos vazias, de onde, num passe de mágica, tinha feito desaparecer o morteirete!

Mas o pior foi vermos a granada, rodopiando devido à vibração do tubo, a elevar-se na vertical. E aí desatamos a correr aos berros “morteiro, fujam que a granada vai cair aqui”, acompanhando a trajectória da descida, até nos lançarmos para o chão pouco antes do rebentamento.

Quando tudo acabou, não foi pequena a trabalheira para recuperarmos o morteirete.

O Zé Maia tinha-o plantado a preceito, a uma profundidade que a natureza pantanosa do terreno permite imaginar.


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