segunda-feira, 16 de junho de 2008

Textos de Filosofia Política (3)

O ENCOLHIMENTO TECNOCRÁTICO E OS TIPOS IDEAIS

Como foi dito, a dissimetria entre os discursos e as práticas é um fenómeno geral muito visível no plano do poder onde a dimensão dos interesses envolvidos e os vários constrangimentos sociais tendem a distanciar significativamente a acção da teoria. Nestas condições, as medidas concretas dos governantes tendem a ser manifestações mitigadas e algumas vezes perversas das filosofias seminais subjacentes aos exercícios dos sujeitos políticos que ocupam o comando. Muito mais favorável à radicalidade expressiva da pureza das doutrinas originais, o espaço da oposição nem sempre pode colar-se à autenticidade e há formações ideológicas que recuam e moderam programadamente o verbo político.

Isto significa que motivações e objectivos imanentes aos ideários políticos podem permanecer ocultos à espreita do momento favorável para emergirem à luz do dia, mormente os projectos políticos hostis às exigências substantivas e formais de uma dada cultura política: parece ser este o caso da tecnocracia. O ideário dos tecnocratas está a insinuar-se progressivamente na psicologia colectiva e a ganhar terreno nas práticas sociais dos mais variados níveis mas ainda não desfez nem substituiu os imaginários políticos vinculados a valores estéticos, éticos, sociais e económicos de raiz ideológica subjectivista e vocacionados para o pluralismo. Por isso, a tacnocracia continua a cobrir-se de nebulosas discursivas cuja dissipação requer um retorno às fontes que desnude o modelo político ideal em que a teoria se reconhece: só assim decifraremos os conteúdos exactos da racionalidade e dos objectivos que o discurso político tecnocrático esconde.

Isto significa que é preciso determinar as lógicas inibidas de um ideário político para antecipar a sociedade-modelo que lhe é imanente independentemente das percepções, das expressões e das práticas dos seus actores políticos individuais e colectivos.

Um modo de diagnósticar os valores, as concepções e os propósitos plenos de uma doutrina política é usar a metodologia ideal-típica para construir o tipo ideal de cidade inerente ao sistema teórico que a filia. Nesta perspectiva, é o discurso filosófico comteano que deve ser inquirido para estabelecer o «tipo ideal» da tecnocracia e reflectir sobre os valores, os sentidos, as práticas e as instituições que lhe são inerentes.

Todos os discursos políticos envolvem um conjunto de sentidos e de práticas potenciais que se pudessem ser integralmente cumpridos criariam mundos significativamente diferentes dos resultantes das suas execuções concretas. Esta dissemelhança é proporcional às dimensões oniricas ou utópicas do discurso que busca realizar modelos cuja construção ilude os dados da realidade humana seja ela qual for.

No caso da tecnocracia podemos efinir cenários futuristas de uma cultura cientificista total se operarmos uma libertação teórica radical dos traços típicos da cidade positivista e se os articularmos especulativamente a outras fontes inspiradores posteriores. Esta abstracção conduz à definição de um «tipo ideal» de tecnocracia que nos mostra como seria a sociedade dos tecnocratas se eles levassem até às últimas consequências a lógica do seu ideário político e da cultura conexa.

Da aplicação da metodologia ideal-típica weberiana resulta um tipo ideal tecnocrático que retém a essência da utopia positivista de Comte e das teses managerialistas que substituíram os empresários e os sociólogos positivistas por gestores profissionais na condução da coisa privada e pública.

Valter Guerreiro

Recebido do autor por email

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