O Conselho Disciplinar abriu um inquérito confidencial, oficialmente designado “Caso do Prelúdio da Madrugada”, cuja evolução transpirou por incúria do chefe da secretaria que, não se fiando na fechadura do liceu, levava o processo consigo para casa.
Numa noite húmida e acalorada, vítima da insónia e da sede tropical, acabou por se esquecer das actas confidenciais, que nunca largava, sobre o frigorífico. E Simplício, ao procurar dessedentar-se com água gelada, a altas horas da noite, encontrou-as e leu-as. Avidamente, é claro.
Alberto Simplício, filho do administrador de Cazombo, junto à fronteira leste, fora confiado pelo pai à hospitalidade vigilante do secretário liceal. Cama, mesa e roupa lavada, com garantia do rapaz escolarizado ao abrigo de um lar respeitável, pela mensalidade de setecentos angolares, era uma lança em África.
O administrador Simplício até costumava dizer frequentemente à mulher: “é um cara direita este secretário”. E sobejavam-lhe motivos para o estimar, pois o secretário nunca se esquecia de rechear a solicitude das encomendas, com desvanecedoras referências ao comportamento de Alberto. Sempre que chegava um embrulho com agulhas de gramofone, pó-de-arroz para dona Miquelina, ou suspensórios elásticos para o senhor administrador, lá vinha uma palavrinha tranquilizadora e lisonjeira: “o pequeno vai de vento em popa e está cada vez mais parecido com o papá, meu ilustre amigo... Saúdo respeitosamente D. Miquelina, permitindo-me parafrasear o vate: ditosa mãe que tal filho tem”.Há lá progenitores que resistam a tanto encanto!
Na volta do correio, o administrador prometia infalivelmente: “creia que a nova lista de artigos, que agradeço procure nas lojas da capital, é a última. Envergonha-me abusar dos seus préstimos, mas, já agora, recomendo-lhe que compare preços em vários estabelecimentos”.
Além disso, também incluía sempre, na última parte das cartas, um post-scriptum, que rezava: “Eduque o Alberto à rédea curta, porque ele está numa idade perigosa. Se descarrilar, descanse que vou a Luanda metê-lo nos eixos. Mas olhe que, na cara do meu rapaz, para se tornar homem, só quem toca sou eu”.
Tal tipo de recomendações impressionava vivamente o destinatário, como modelo didáctico de pedagogia varonil. Ao paternalismo interino do secretário era vedado violar a legitimidade exclusiva da tareia paterna.
Álvaro Fernandes, in “Berços de renda, enxergas de trapo”
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