terça-feira, 17 de junho de 2008

Interdito a todas as idades

A censura na música, literatura e cinema

No Estado Novo, a arte tinha duas faces. Numa, era propaganda e tinha o apoio do regime. Na outra, era clandestina e, para a maior parte da população portuguesa, era como se não existisse. Ainda assim, encontrou maneira de sobreviver no escuro. Além do exame prévio às notícias emitidas, a Emissora Nacional (EN) tinha até ao final do Estado Novo um serviço de censura que emitia "notas de serviço interno", escritas pelo director do serviço de programas ou pelos chamados assistentes musicais e assistentes literários. Nelas podiam ler-se observações como "impróprio e inconveniente para transmissão", "devem ser retirados de programação" ou "por determinação superior, não poderá ser transmitido". Muitas vezes, os trechos ou discos censurados aparentemente não beliscavam em nada o Estado Novo. Outros eram censurados por serem de autores conotados como opositores ao regime, como as "Baladas" de Zeca Afonso. As notas da censura destinavam-se não só a cantores de intervenção, como também a grupos folclóricos ou cantares ao desafio. O serviço interno de censura encarregava-se de riscar com pregos, destruir ou "remeter para arquivo" os discos ou faixas censuradas. Nos arquipélagos, a censura não se sentia da mesma forma. Como refere João Coelho, actual director de programação da RDP/Antena 1, no centro de difusão dos Açores da EN chegavam a passar canções de Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira. Se a rádios estatal era, nas palavras de Luís Filipe Costa, antigo chefe de noticiários do Rádio Clube Português (RCP), "mais papista do que o papa", o RCP, apesar de ter sido criado para apoiar Franco na altura da Guerra Civil de Espanha, tinha uma postura um pouco mais aberta, em parte porque havia publicidade que era preciso fazer render e o canal tinha de cativar audiências. Não deixava, no entanto, de ter um serviço de fiscalização, tal como a Rádio Renascença. Foi a partir da década de 60 que a censura passou a exigir um exame prévio das letras dos discos a gravar. Era José Niza, músico e produtor de José Afonso, quem dialogava com os censores, usando de estratégias como apresentar-lhes letras mais contestatárias do que aquelas que pretendiam gravar. Como os censores não podiam cortar tudo, os artistas acabavam por conseguir gravar o que queriam. Mesmo assim, a apreensão de discos continuava, a realização de espectáculos era condicionada e músicos como José Afonso, Manuel Freire, Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira e Francisco Fanhais eram perseguidos. Os festivais RTP da canção tiveram também um papel importante, especialmente na década de 70. Foi por lá que passou a "Tourada", protótipo da canção-metáfora contra o regime, e "Depois do Adeus", senha para o mobilização do golpe militar. No I Festival de Música Popular Portuguesa, com a presença dos melhores músicos da época, canções censuradas tiveram de ser trauteadas, apenas três semanas antes do 25 de Abril.
A palavra é uma arma
Até aos anos 50, não havia censura prévia aos livros, que eram apreendidos, já depois de publicados, na sede das editoras, nas livrarias ou até nas casas dos escritores, para serem destruídos ou arquivados. As editoras dos livros apreendidos tinham de indemnizar os livreiros da despesa com a compra de livros que nunca chegariam a ser vendidos. A Direcção de Censura era formada por oficiais das Forças Armadas, pessoas sem qualquer preocupação cultural que agiam na mais completa arbitrariedade. Não sabendo, muitas vezes, como actuar, optavam por cortar tudo, votando muitas obras ao esquecimento. Em 1939, Miguel Torga foi preso pela publicação do seu "Quarto Dia da Criação do Mundo", um romance autobiográfico em que o escritor retrata o regime franquista. Nem a criação de um Conselho de Leitura para orientar o procedimento dos oficiais do Exército viria a mudar o estado das coisas. Já nos anos 50, saiu um decreto segundo o qual as tipografias que imprimiam um livro do género económico ou político-social teriam de enviar um exemplar à censura para exame prévio. Francisco Lyon de Castro, fundador da editora Europa-América, relembra o caso do livro "Grandes Doutrinas Económicas", de Fernando Piteira Santos. A obra foi publicada em 1966 com o nome falso de Arthur Taylor, o que lhe permitiu escapar à censura, ao contrário do que aconteceria com um outro livro do mesmo autor, publicado com o seu nome verdadeiro. Os autos de apreensão dos livros não só eram feitos pela PIDE, como também pela PSP, pela GNR e até pelos Correios, cujos funcionários - recebida uma comunicação dos censores - punham imediatamente de parte os livros censurados que lhes chegavam. As apreensões eram feitas em todo o território português, do continente até Timor, o que veio a ser facilitado com um sistema de comunicações rádio entre os vários órgãos repressivos. A censura recaiu sobre escritores como Fernando Namora, António José Saraiva, Urbano Tavares Rodrigues, Mário Cesariny, Natália Correia ou Manuel Alegre, que viu todos os seus livros censurados. No entanto, havia círculos de "insubmissos" que faziam uma distribuição clandestina dos livros, muitas vezes sob a forma de cópias manuscritas. A "Era das Tempestades", obra do deputado socialista, teve uma publicação de 15 mil exemplares que se esgotaram nos primeiros 15 dias após a sua publicação, tempo demasiado curto para a PIDE se aperceber. A última apreensão de um livro poético foi feita em 1973, com a "honra" a pertencer a José Manuel Mendes, autor de "A Esperança Agredida". Como este poeta, muitos outros viveram "numa escalada que o 25 de Abril interrompeu fabulosamente".
Películas proibidas
"Sofia e a Educação Sexual", de Eduardo Geada, teve estreia comercial a 1 de Outubro de 1974, depois de meses antes ter sido proibido pela censura. "Levei o filme para ser visionado", relembra o realizador que pouco tempo depois recebeu a notícia de que a obra fora autorizada, mas com cortes. "Interpusemos recurso e, em finais de Março, fui chamado ao edifício da censura, onde me explicaram que o filme tinha sido reprovado." Na ficha de censura, o filme era considerado dissolvente dos valores morais estabelecidos e susceptível de levantar problemas de ordem sociopolítica. "Sofia" foi um êxito, tal como muitos dos filmes proibidos antes de 25 de Abril. Obras como "O Último Tango em Paris" ou "Laranja Mecânica" fizeram esgotar salas. Mesmo um filme mudo e a preto e branco de 1925, "O Couraçado Potemkine", teve lotações esgotadas durante muito tempo, recorda Lauro António, autor do livro "Cinema e Censura em Portugal". Bastava existir a "aura" de proibido e as bilheteiras estava, garantidas. Foi assim que os filmes pornográficos fizeram furor nos primeiros anos da democracia. Durante alguns anos, Portugal serviu mesmo de "oásis" aos cinéfilos espanhóis que iam a cinemas de fronteira ver os filmes interditos. Durante o Estado Novo, uma película apresentada à censura podia ser aprovada na íntegra ou com cortes, ou proibida. Mas a origem dos filmes também significava algumas diferenças de tratamento. José Manuel Castello Lopes, presidente da distribuidora Filmes Castello Lopes, recorda que, juntamente com os filmes estrangeiros, seguia para a Comissão uma lista de legendas. "Mandava a prudência que o número de cópias a legendar se definisse depois de recebido o ofício da censura", lembra o distribuidor, que chegou a retirar do mercado filmes cortados duas e três vezes. As produções portuguesas, por dependerem do Estado para existir, eram logo seleccionadas quando chegava a altura de se apresentar o guião. Só eram escolhidas aquelas que eram mais agradáveis ao regime. Os realizadores António Lopes Ribeiro e Leitão de Barros eram os preferidos. No entanto, a partir dos anos 60, dá-se o advento do Cinema Novo português: mais independente, sem apoios do Estado, mas ainda obrigado a visionamento pela censura. É o período de Fernando Lopes e Paulo Rocha. "A censura durante a ditadura funcionou de uma forma arbitrária, um pouco ao gosto pessoal", considera Lauro António. Não havia um critério único e os próprios distribuidores enviavam os seus filmes às comissões mais permissivas. No Governo de Marcelo Caetano, algumas obras foram recuperadas, como "Ivan, o Terrível", de Eisenstein, e alguns filmes tiveram licença para serem exibidos em salas estúdio ou em festivais (com apenas uma projecção). Mas, a partir de 1961, a guerra colonial introduziu um novo tema proibido, e filmes como "Oh! What a Lovely War" ou "A Colina Maldita" não passaram, porque podiam desmoralizar as tropas portuguesas em África.
Visados pela Censura
As listas apresentadas são uma pequena amostra das obras mais importantes censuradas pelo Estado Novo. Na música e literatura, a acção da censura fazia sentir-se mais sobre os autores, enquanto no cinema actuava sobretudo sobre os títulos. No "index" respeitante aos filmes, transcrevem-se excertos dos ofícios da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos.

MÚSICA
(discos censurados na Emissora Nacional)
portugueses
Adriano Correia de Oliveira
"Gente de Aqui e de Agora"
Amália Rodrigues/Vinicius de Moraes
Disco com o mesmo nome, diversos intérpretes
António Calvário
"Vou ao Norte"
Carlos Mendes
"Segunda Canção com Lágrimas" (letra de Manuel Alegre)
"E alegre se fez triste"/"O Regresso"
Carlos do Carmo
"Ferro Velho"
Fausto
"África", "Ó Pastor que Choras" e "Chora, Amigo"
Fernando Lopes Graça
"O Menino de sua Mãe" (faixa)
Fernando Tordo
"Viagens que passais", "Sangue nas Palavras" e "O Café" (faixas)
João Perry
"Textos Literários/Poesia de Eugénio de Andrade"
José Afonso
"Menino do Bairro Negro"
"Os Vampiros"
"Ó Vila de Olhão"
"Cantigas de Maio"
"Venham Mais Cinco"
José Barata Moura
"Subúrbio"
"Vamos Brincar à Caridadezinha"
José Jorge Letria e Carlos Alberto Moniz
"Três Novas e Três Velhas"
José Jorge Letria de Viva Voz
José Mário Branco
"Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades"
Luís Cília
"Duas Melodias"
"Meu País"
Manuel Freire
"Manuel Freire"
Mário Viegas e Daniel Filipe
"A Invenção do Amor"
"Palavras Ditas"

estrangeiros
John Lennon
"Power to the People"
Jean Ferrat
"Los Guerrilleros" (faixa)

LIVROS
Alves Redol
"A barca dos Sete Lemes"
António José Saraiva
"História da Literatura Portuguesa"
António Sérgio
"Educação Cívica"
"História de Portugal"
Aquilino Ribeiro
"Quando os Lobos Julgam, a Justiça Uiva"
Ary dos Santos
"O Carnaval da Justiça"
Fernando Namora
"Domingo à Tarde"
"Os Clandestinos"
José Afonso
"Cantares de Novo"
José Cardoso Pires
"Histórias de Amor"
José Carlos Vasconcelos
"De poema em riste"
José Manuel Mendes
"A Esperança Agredida"
José Régio
"O Jogo da Cabra Cega"
Manuel Alegre
"O Canto e as Armas"
"Lusiade Exilé"
"Praça da Canção"
Mário Cesariny de Vasconcelos
"Um Auto para Jerusalém"
Miguel Torga
"O Paraíso"
"A Sinfonia"
"Quarto Dia da Criação do Mundo"
"Diário" (oitavo volume)
Natália Correia
"Antologia da Poesia Erótica e Satírica"
"Comunicação"
"O Encoberto"
"O Vinho e a Lira"
Raúl Proença
"A Ditadura Militar"
Soeiro Pereira Gomes
"Esteiros"
"A Engrenagem"
Urbano Tavares Rodrigues
"A Guerra do Vietname"
Vergílio Ferreira
"O Caminho Fica Longe"

FILMES
As Vinhas da Ira, de John Ford (1940)
A Corda, de Alfred Hitchcock (1948)
A Terra Treme, de Luchino Visconti (1948) - "Paira neste filme uma atmosfera contra a sociedade instituída. (...) O filme constitui um espectáculo inconveniente e altamente perigoso."
Verboten, de Samuel Fuller (1958) - "É um filme de baixa propaganda antinazi (...). É um filme de ódio, politicamente inconveniente. É em suma um assunto ultrapassado."
Les Cousins, de Claude Chabrol (1959)
O Acossado, de Jean Luc Godard (1959) - "O filme é de todo o ponto inconveniente porque não é mais do que a apresentação de situações à margem da lei e da moralidade."
A Adolescente, de Luis Buñuel (1960) - "Trata-se de um filme de Luis Buñuel, conhecido realizador espanhol de formação à esquerda (...). No decorrer da história, muitas vezes aflora um racismo violento de brancos contra pretos (...). O filme seria de aprovar, noutro momento (...). Porém, neste momento em que nos afligem problemas delicados em África, não seria conveniente a aprovação de um filme deste tipo."
O Julgamento de Nuremberga, de Stanley Kramer (1961)
Lolita, de Stanley Kubrick (1962) - "Baseado num livro que foi proibido no nosso país, este filme (de elevadíssima craveira artística e técnica) expõe com realista fealdade a história sórdida de uma excessiva paixão de um homem adulto por uma adolescente. A baixeza do argumento leva-nos a votar pela reprovação."
A Colina Maldita, de Sidney Lumet (1965) - "As situações apresentadas neste filme criam um desrespeito completo pela hierarquia militar e até, em certos aspectos, ódio ao exército."
Dracula, Prince of Darkness, de Terence Fisher (1966) - "Trata-se de um filme que pretende fazer crer na existência de vampirismo, em que este aparece ligado com a religião."
Reflexos num Olho Dourado, de John Huston (1967)
Oh! What a Lovely War, de Richard Attenborough (1969) - "Reprovamos o filme pois é um libelo cruel contra a guerra."
Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni (1970) - "Reprovamos o filme: a revolta da juventude nas primeiras partes e a destruição da civilização na última são os motivos determinantes."
Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick (1971)
Grande, Grande era a Cidade, de Rogeiro Ceitil (1971)
O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci (1972)
As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, de Rainer Fassbinder (1972) - "Filme de grande intensidade dramática, que respira desde a primeira à ultima imagem um erotismo como raramente temos visto."
A Grande Farra, de Marco Ferreri (1973)
Sofia e a Educação Sexual, de Eduardo Geada (1973)

Vera Dantas e Marcos Vaza

2 comentários:

zigoto disse...

Pois é.
Mas já repararam que, sem haver formalmente censura, ela existe, e cada vez mais apertada?
Notem o alinhamento dos noticiários televisivos e radiofónicos: dão todos, e quase em simultâneo, as mesmas notícias.
Leiam os jornais e notarão o mesmo.
Aliás, é sabido que as notícias são difundidas por "centrais" e a comunicação social limita-se a papaguear a voz do dono.
Por enquanto tem-se salvo a blogosfera, embora (como é o caso deste blogue) sujeita a permanentes ataques de vírus que tentam silencia-lo.
Também já foi anunciada a "regulamentação" dos blogues e... o que mais virá.
Enfim, mais dia menos dia,lá teremos de voltar à distribuição de panfletos policopiados....
Vai ser giro. Dá mais luta...

Anónimo disse...

Caro Zigoto,o sr diz "regulamentação" dos blogues? O que eu já vejo por aí é a "marretação" dos blogues.