sábado, 15 de março de 2008

SERMÃO DO BOM LADRÃO

[...] Respondo — diz Santo Tomás — que se os príncipes tiram dos súbditos o que segundo justiça lhes é devido para conversação do bem comum, ainda que o executem com violência, não é rapina ou roubo. Porém, se os príncipes tomarem por violência o que se lhes não deve, é rapina e latrocínio. Donde se segue que estão obrigados à restituição, como os ladrões, e que pecam tanto mais gravemente que os mesmos ladrões, quanto é mais perigoso e mais comum o dano com que ofendem a justiça pública, de que eles estão postos por defensores. [...]
[...] Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este género de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa, ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: O ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento, distingue muito bem S. Basílio Magno: Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco; estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um, chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar: Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. — Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só. [...]
Sermão do Bom Ladrão (1655), do Padre António Vieira.


Trezentos e quarenta e três anos volvidos sobre o sermão do Padre António Vieira na Misericórdia de Lisboa, perguntámo-nos porque não é ele incluído como artigo de opinião em todos os jornais portugueses. Naturalmente, com chamada em caixa alta no topo da primeira página.
Ou melhor ainda: porque não é ele lido na abertura de todos os noticiários da televisão de Portugal? Não é necessário lê-lo na íntegra. As passagens transcritas, que levarão poucos minutos a recitar, bastam.
Ouvi há meses atrás na SIC Notícias que uma senhora idosa, apanhada a roubar uma bisnaga de creme de cerca de um Euro numa grande superfície, foi celeremente levada a tribunal. A um desses tribunais que andam há anos a prometer julgar o processo do “Apito Dourado”, da Câmara de Felgueiras, do Presidente de Oeiras, etc.. Ou o Padre António Vieira tinha dons divinatórios, ou os homens não tomam emenda. Vieira seria inspirado pelo Espírito Santo, mas não acredito que a sua capacidade de visão do futuro fosse tão longe que chegasse aos nossos dias.
Quatro séculos de retórica política e social deram em nada. Quatro séculos a burilar o sistema de liderança do povo lusitano deram em nada. Quatro séculos de afinação da Justiça portuguesa deram em nada.
Em boa verdade, e é triste dize-lo, em Portugal quase tudo dá em nada quando se trata de castigar os maus e premiar os bons. No cinema português os maus não morrem nem os bons ficam. Ao contrário, os maus são cada vez mais e com melhor saúde, e os bons morrem de inanição.
Problema genético?
Problema de educação?
Filosofia de vida perversa?
Masoquismo social? Alguém sabe responder?
Para ser inteiramente honesto, a única coisa que me ocorre a este respeito são os romanos quando diziam, devido às dificuldades que enfrentavam em pacificar o território Lusitano povoado por bandos comandados por um bárbaro chamado Viriato: Para além dos Pirinéus, há um povo que nem se governa, nem se deixa governar. Acrescentaria eu que, além de não se governar nem se deixar governar, tal povo se deixa roubar alegremente.
Com uma vénia a "ocantodocirne.blogspot.com"

1 comentário:

zigoto disse...

Bem prega Frei Tomás mas, a continuarmos assim, talvez este vaticínio de Alexandre o'Neill se concretize:
"quando do cavalo de tróia saiu outro
cavalo de tróia e deste um outro
e destoutro um quarto cavalinho de
tróia tu pensaste que da barriguinha
do último já nada podia sair
e que tudo aquilo era como uma parábola
que algum brejeiro estivesse a contar-te
pois foi quando pegaste nessa espécie
de gato de tróia que do cavalo maior
saiu armada até aos dentes de formidável amor
a guerreira a que já trazia dentro em si
os quatro cavalões do vosso apocalipse"