sexta-feira, 28 de março de 2008

BRANDOS COSTUMES

BORRACHO COM ARROZ

O patriarca do Toto, senhor de vastas fazendas, produtor de arroz e criador de pombos, tornara-se famoso com a lenda da Baixa dos Dois Teimosos, um troço de aterro na picada para Quimaria. Na época das grandes chuvadas tropicais, viatura que fugisse dos trilhos enterrava-se até aos eixos.
Concebidos noutras paragens mais amenas, os limpa-pára-brisas tornavam-se inoperantes, durante o dilúvio.

Reza a lenda que, certo dia, agarrado ao volante duma velha carripana, ia o Cid Adão a pensar na arca de Noé, quando esbarrou num obstáculo. Passado um momento de perplexidade, percebeu que tinha chocado contra um automóvel imponente, negro e luzidio. Encharcado até aos ossos, o motorista acercou-se, para lhe fazer ver que estava a obstruir a passagem ao novo governador.

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Quem? Eu?! Ele é que se atravessou no meu caminho! Esta estrada foi aberta pelo Cid Adão Gonçalves e pertence-lhe! - barafustou Cid Adão.
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Era o que faltava! contrapôs o governador, antes de espirrar. Onde é que já se viu um anónimo cidadão Gonçalves cortar o passo ao governador?
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Anónimo é o senhor! Na picada do Cid Adão Gonçalves, ninguém circula sem autorização prévia! Nem o governador!
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Recue imediatamente! - ordenou o governador.
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O aselha do seu motorista que se desvie ou faça marcha atrás!
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Isso é que era bom! Onde é que já se viu um governante percorrer itinerários de caranguejo, às arrecuas? Ainda por cima, o senhor pretende que eu dê a primazia a um cidadão anónimo. Nunca!
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Isto é uma violação do sagrado direito à propriedade privada. E sabe que digo, nestes casos? - perguntou Cid Adão Gonçalves.
Aqui, é o autor obrigado a suspender a narrativa, pois a trovoada não lhe permitiu entender completamente o edificante diálogo que se seguiu, entre as individualidades em litígio. Notou, todavia, pelos semblantes carregados, e um ou outro gesto incontido, que o longo equívoco foi penoso, para as partes envolvidas.

Importa é salientar que o desagradável mal-entendido acabou por sanar-se a contento. O governador fez questão em que Cid Adão tomasse lugar, a seu lado, na viatura oficial, ao que este aquiesceu prazenteiramente.

Recolheram ambos ao Toto, em amena cavaqueira. O governador perorou sobre o desenvolvimento das teorias psico-sociais e explanou o seu ponto de vista.

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Pauto a minha acção pelo respeito aos princípios de justiça social, consignados no Código Indígena. Através de uma correcta acção psico-social, criarei um verdadeiro homo “afroluso”. De pele negra mas alma branca. É dele que a nossa pátria pluricontinental e multirracial precisa, para derrotar a subversão comunista. Um primo da madrinha de minha mulher, que é chefe de gabinete do secretário do senhor ministro do ultramar, disse-me que sua excelência aprova inteiramente as minhas ideias.
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Auguro a vossa excelência uma governação repleta de êxito - disse, inclinando cortesmente a cabeça, Cid Adão.
Chegados ao Toto, o governador desejou conhecer a “sua prole de trabalhadores” e Cid Adão viu-se em trabalhos para o distrair, enquanto um diligente capataz se afadigava, no armazém, distribuindo calções e camisas de ganga a trezentos contratados maltrapilhos.

Após visitar as plantações de arroz, “que nem na China há iguais”, e os pombais, onde ensaiou alguns gorjeios que espantaram as pombas, o governador falou aos contratados.

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Tendes a felicidade de viver numa terra portentosa, que o engenho lusíada tornou exuberante. Trabalhai-a disciplinadamente, para serdes merecedores do sacrifício do vosso patrão, o meu ilustre amigo Cid Adão Gonçalves. Quis Deus, com a sua omnisciência, dar-vos uma pele negra. Aceitai-a, sursum-corda, pois Deus, na sua infinita misericórdia, ainda vos fez criaturas humanas.
Para merecerdes esta condição, tereis, porém, de vos portar como homens honestos e trabalhadores, que ganham a vida e cumprem o seu dever, pagando os impostos ao senhor administrador.

Não vos importeis com o negrume da pele, porque, para vos lavar a alma e a tornar pura e branca, como a dos governantes que o providencial doutor Salazar vos enviou, cá estou eu.
Serei, para vós, um pai severo, mas bondoso. Saberei escutar as vossas reclamações, desde que não abusem, é claro. Não me peçam o Céu, pois não vo-lo poderei dar. Dar-vos-ei, todavia, um conselho: sede mansos e diligentes para o merecerdes, para, após a morte, vos libertardes do fardo negro desta vida.
“Boi-cavalo”, um capataz assim alcunhado pela frequência com que mimoseava os contratados com cabeçadas e pontapés, traduziu a intervenção do governador, dizendo:
- Este branco grande é nosso pai e amigo do patrão. Vocês são pretos, porque Deus é porreiro. Senão seriam macacos. Os macacos não trabalham nem pagam impostos, mas têm rabo. Vocês não têm rabo e, por isso, para agradecer a Deus, têm de trabalhar muito. O dinheiro que o patrão vos dá não é para gastar na farra. É para pagar imposto ao senhor administrador, caso contrário, dou-vos porrada. Quem paga imposto fica lavado. Fica com a alma da cor destes brancos. E vai para o céu, quando morrer. O branco grande disse que vocês podem falar.
Um murmúrio inintelegível cresceu no grupo de contratados, antes de um ancião, de carapinha toda branca, tomar a palavra, no seu português peculiar.
- A gente aprendeu que a alma não tem cor. O branco grande não precisa de ficar preocupado. O imposto, a gente paga sempre. Aqueles que fica doente e não pode trabalhar fica mais anos no contrato, para ganhar o dinheiro do imposto. O branco grande é amigo do patrão. Deve dizer nele que a gente está farto de borracho com arroz. A gente não gosta de borracho com arroz. A gente tem borracho com arroz todos os dias.
O governador afirmou ter registado tudo com agrado e deu por encerrado o encontro.
Ao jantar, sua excelência elogiou a magnanimidade do patrão que “diariamente serve borracho com arroz aos seus empregados. É manjar de reis. É apaparicá-los!”
- Têm o que merecem, excelência - contrapôs o anfitrião.
Passados tantos anos, permanece o narrador na dúvida. Será que o governador não percebeu que o “borracho com arroz” era uma câmara de ar, de borracha, cheia de arroz e atada nos extremos, como chouriço?
Cid Adão mandava aplicá-la nos rins dos indolentes. Substituía vantajosamente o tradicional chicote de cavalo-marinho. Os golpes não deixavam marcas.

Álvaro Fernandes in “Berços de renda, enxergas de trapos”; “Em Marcha”, Lisboa 1980

2 comentários:

Anónimo disse...

Cidadão Fernandes porque não escreve mais coisas deliciosas como este texto? Vença lá essa grande preguiça que o ataca de vez em quando e publique mais pérolas destas.
Estas subtilezas valem mais que muitos panfletos já estafados que circulam por aí.

antoni115 disse...

CONCORDO COM A ANÓNIMA..ESTES TEXTOS SÃO PÉROLAS DELICIOSAS..