segunda-feira, 24 de março de 2008

NO TEMPO EM QUE SE APRENDIA A ESCREVER


Em Outubro de 1964 desembarcaram do navio Lima, no cais da Pontinha, seis aspirantes a oficial miliciano destinados ao BII 19 (Batalhão Independente de Infantaria 19, há muito extinto).

Embora a Madeira sempre tenha sido “um jardim”, o paraíso onde Winston Churchil se deleitava a fixar em aguarelas os pesquitos de Câmara de Lobos preparando-se para a faina do espada preto, pescado ao anzol a profundidades de quatrocentos metros, não se tratava de turistas em férias na “Pérola do Atlântico”.

Eram, tão-somente, jovens universitários incorporados nas Fileiras e destinados ao comando dos pelotões que, durante uma comissão de dois anos, iriam combater nos teatros de operações da Guiné, Angola e Moçambique. Até lá, dariam instrução ao contingente geral do Serviço Militar Obrigatório, hoje chamado Serviço Efectivo Normal (tendencialmente uma espécie rara em vias de extinção...), e enquadrariam as três companhias de “prontos”.O Batalhão Independente (pasme-se!) só dispunha de dois Oficiais do Quadro Permanente: o major comandante e um capitão de Infantaria que servia de colher-de-pau para toda a obra.

Não surpreende, portanto, que o Oficial de Justiça fosse um idoso tenente do Serviço Geral, na situação de Reserva por ter ultrapassado o limite de idade, mas impedido de gozar o merecido descanso por fazer falta ao serviço. Ora, nessa época, ainda se estava longe de pensar em criar a Polícia Judiciária Militar e, por maioria de razão, de lá colocar juízes de instrução do Quadro de Pessoal Civil do Exército. Mas lá que não faltavam processos disciplinares e autos de averiguações que, frequentemente, davam origem a corpo de delito, garante-vos o narrador que é verdade.

Importava, pois, ensinar depressa e bem aos jovens aspirantes como desempenhar o papel de “oficial averiguante” ou de “oficial da Polícia Judiciária Militar”, elaborando os respectivos autos de acordo com as complexas normas a que o direito processual obriga.

Para isso, o sacrificado tenente convocava os esforçados aspirantes para a biblioteca da unidade, logo que o corneteiro de dia soprava em notas estridentes o ansiado toque de ordem. Depois de os mandar sentar em torno da longa mesa central, distribuía-lhes uma série de participações acompanhadas do inevitável caderno azul de vinte e cinco linhas, marginado a vermelho, três centímetros à esquerda e dois à direita.

A seguir, mandava entrar participantes, presumíveis culpados e testemunhas que aguardavam de pé, atrás do aspirante a quem tinha sido atribuída a averiguação do caso que lhes dizia respeito.

Sem perder tempo, sob pena de comerem todos a terceira refeição fria, pedia a cada um dos aspirantes que lesse em voz alta a respectiva participação. E, então, sem consultar o prontuário (que o saber de experiência feito já lhe permitia conhecer de cor e salteado o formulário completo de direito processual), ditava:

- Aos tantos dias do mês de Outubro de mil novecentos e sessenta e quatro, nesta cidade do Funchal e Quartel do Batalhão Independente de Infantaria dezanove, em cumprimento do despacho exarado pelo Excelentíssimo Comandante da Unidade na participação que constitui folhas um, eu, fulano de tal, aspirante a oficial miliciano desta Unidade, dou início ao presente auto.

Entretanto fazia uma ligeira pausa, olhava para o diligente escrivão, e acrescentava invariavelmente:

- Ó senhor aspirante, olhe que exarado escreve-se com xis.

Certa vez, um aspirante melindrado, decidiu arriscar:

- Ó meu tenente, eu não sou analfabeto. Sei muito bem que exarado se escreve com xis...

- Ai sabe? Pois eu também sei que há muitos aspirantes que escrevem com e, às vezes, até com esse.

2 comentários:

Anónimo disse...

Aposto que a aluna que agrediu a professora na Escola Carolina Michaelis - e os que se divertiram com a cena - até escrevem "ejarado"...

Anónimo disse...

E aposto que esta menina se chegar ao fim de um qualquer curso, quando lhe chamarem a atenção que não se diz "ades" mas sim hás-de,vai-lhe responder que isso não tem importância nenhuma.
Uma ilustre Directora Financeira de uma Empresa conceituada quando a corrijo responde que o suficiente é que a entendam visto ser uma técnica. Ainda estou para saber quem lhe põe os cabeçalhos nos relatórios. Provavelmente alguma escriturária lá do serviço com a 4ª classe antiga.