sexta-feira, 4 de julho de 2008

Textos de filosofia política (14)



A TECNOCRACIA E AS IDEOLOGIAS

A subordinação das concepções, sensibilidades e práticas em voga nas democracias aos desígnios da tecnociência não conduziu às estruturas monolíticas e à homogeneidade cultural fundadas no culto colectivo da ciência. Não obstante, a memória positivista do «ser tecnocrático» guarda um impulso mais ou menos consciente e definido para a redução das coisas aos domínios da racionalidade instrumental no que toca ao quotidiano porque nas oportunidades excepcionais os fervores místicos e religiosos podem atingir dimensões surpreendentes e mostrar que a espiritualidade permanece viva e pode ser activada em direcções que excedam eventualmente as controladas por via das instituições e aparelhos instalados.
O tecnocrata não concede às intuições, aos sentimentos e às emoções desencadeadas pela fé ou provenientes de uma qualquer outra fonte um estatuto significativo na elaboração dos comportamentos e processos ajustados à produção de resultados eficazes. Contudo, a priorização do racional não revela a identidade do tecnocrata: o que o singulariza são os contributos reais que oferece à criação de um clima intelectual favorável à instalação de representações negativas sobre a utilidade das crenças, dos afectos e das subjectividades pessoais nas esferas onde se constrói a vida dos cidadãos. Para o tecnocrata, ciência, economia e política são domínios onde o trabalho humano só é eficaz na medida em que prosseguir objectivos concretos segundo processos racionalizados e a cultura do «dever ser» só responde ao perfil e às exigências da modernidade se obedecer a uma consciência pragmatista.
O perfil do tecnocrata puro não se esgota na negação da capacidade da filosofia e da doutrina para capturarem o real e na desvalorização do papel das emoções nos segmentos cruciais da vida. O tecnocrata moldado na «matriz positivista» vai ao ponto de aceitar que da racionalidade científica deve derivar a normatividade política: as tarefas de escolha dos fins naturais da humanidade e de condução dos povos são de índole tecnocientífica e exigem competências compatíveis. Na idiossincrasia tecnocrática radical o conhecimento e a gestão são coutadas da tecnociência que capta regularidades, define leis, traça objectivos sociais e executa em conformidade: a ideologia é pura especulação, a fé remete para categorias imaginárias e as emoções não são mecanismos mentais apropriados ao conhecimento que é necessário possuir e à lucidez que se deve ter para encetar os comportamentos eficazes e para tomar as melhores decisões.
A abstracção de uma tecnocracia pura fundida na forma ideal típica do positivismo esbate-se naturalmente no concreto histórico. Quer seja diagnosticado no pluralismo democrático ou nos monolitismos, o impacto desideologizante dos poderes tecnocráticos tantas vezes identificado com o «fim das ideologias» nunca eliminou o protagonismo da doutrina nas decisões dos cidadãos e dos poderes constituídos: nos ambientes sociais formalmente abertos e plurais e nos monolitismos de modelo soviético nunca os valores e as suas variedades se puderam submeter inteiramente ao primado da tecnociência ou da ciência marxista diversamente interpretada e aplicada. Por razões maiores o mesmo se dirá dos monolitismos fascistas, cuja índole ascética e forte impregnação doutrinária são barreiras fortes à construção de mentalidades e direcções tecnocráticas.
Valter Guerreiro

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