quarta-feira, 16 de julho de 2008

Textos de filosofia política (18)



MARX E O PROJECTO TECNOCRÁTICO

A ligação de Marx ao projecto tecnocrático pode ser grosseiramente estabelecida por uma leitura da experiência soviética que resolva o seu desfecho num totalitarismo de índole tecnoburocática e o assimile aos pressupostos marxeanos. Mas a teoria marxeana e as genéricas antevisões que produziu sobre os conteúdos do pós-capitalismo nada têm a ver com o sovietismo que hipertrofiou o Estado às mãos dos técnicos e dos burocratas associando-os numa empresa contrária à utopia de Marx.
Ainda assim o modelo marxeano invoca o materialismo dialéctico e nessa medida é um monolitismo de base científica ao mesmo título que os modelos platónico e comteano porque supõe a superação das ideologias e a edificação de uma sociedade cujas práticas colectivas decorre de um imaginário político feito de valores que tal como há diferenças substanciais nos pressupostos teóricos de Marx que o deslocam por completo da genealogia tecnocrática e não autorizam sequer a atribuição de uma vizinhança formal do tipo da que atribui ao vínculo entre o platonismo e o ideário tecnocrático. Para além das divergências de conteúdos da dimensão das que foram assinadas em relação às reflexões de Platão,
No marxismo as ideologias são emanações das lutas de classes que exprimem os interesses em luta e a ideologia no poder tem a função de garantir o domínio da classe exploradora. É nesta lógica que o comunismo é chamado a praticar as ideias do proletariado que se consome no processo de transição para dar lugar a uma sociedade sem classes e, portanto, sem ideologia. Para que as ideias proletárias tenham carácter universal e possam ser excluídas dos processos ideológicos Marx transmuda a classe proletária em classe universal com o fito de tornar sustentável a ideia de que os explorados do capitalismo se redimem e redimem toda a humanidade porque falam a verdade que não pode ser outra coisa que uma entidade neutra, geral e desinteressada.
A verdade de Marx é, assim, dotada das características do saber científico tal como a verdade transcendental de Platão e a verdade empírica de Comte! Mas para além deste nível formal onde exibem o selo da ciência nada mais aproxima a verdade marxista das verdades platónica e comteana muito diferentes entre si, como vimos.
Com efeito, a verdade de Marx resulta da aplicação de uma visão dialéctica do mundo, é deduzida da análise das confitualidades sociais concretas, promove um humanismo laico, guia a sociedade panteisticamente na ausência de uma instância política e, finalmente, submete a tecnociência ao domínio da razão histórica emancipada. Este conjunto de traços típicos do discurso marxeano fazem-no incompatível com o ideário tecnocrático que supõe uma concepção anti-dialéctica do mundo, um corpo de princípios desenraizados das lutas entre agrupamentos, a subordinação do homem ao império da tecnociência e a constituição de um governo compatível preenchido pelas competências. e dos seus conflitos políticos sem deixarem de representar ficções da ignorância comum e da erudição errada na visão do filósofo ou de constituir ilusões teológicas e metafísicas gerais resultantes de uma necessidade histórica na leitura do sociólogo. Em qualquer dos casos, platonismo, comteanismo e marxismo coincidem no sentenciamento político das ideologias em nome de teorias que resultam de métodos muito diferentes de investigar o real social e que têm conteúdos irredutíveis.
Do ângulo que destaca a génese extra-social do discurso tido como adequado ao justo exercício do poder e define o perfil dos governantes em coerência com a extracção puramente intelectual das políticas, o platonismo identifica-se muito mais com o imaginário comteano do que com as teses de Marx que constrói uma utopia reflexa de um pensamento a que atribui uma génese social de classe e que encarna no proletariado. Marx, antecipa e explica a substância das ideias proletárias subtraindo-a da análise da sua situação social e projecta um futuro político ditado pelo curso da história que flui necessariamente do materialismo dialéctico. Para Marx as ideias emancipadoras que irão desembocar na construção do comunismo vão desenvolver-se na cabeça do proletariado e a única missão do intelectual comprometido é proceder à sua activação. E não o faz sem participar nas lutas que teoriza e das quais evolam o conhecimento correcto das coisas e a acção revolucionária.
Valter Guerreiro

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