terça-feira, 15 de julho de 2008

Textos de filosofia política (17)



CONTINUEMOS A ABORDAR A TECNOCRACIA

O discurso, as estruturas e as operações tecnocráticas vivem hoje no seio das sociedades de consumo afeiçoadas pelas tecnologias e já não precisam dos dramas sociais para ganharem autoridade. Conceito ambíguo, a tecnocracia reporta-se a dimensões variadas do real que são tomadas isoladamente ou particularmente acentuadas na sua definição. Esta imprecisão é expressa nos trabalhos e artigos sobre o tema e o «Dicionário de Política» de Norberto Bobbio, 1993, testemunha-o mostrando como a caracterização do termo flutua segundo ênfases e perspectivas analíticas distintas. A inclusão dos tecnocratas no sistema de estratificação social na condição de grupo, de categoria ou de classe social, a consideração do poder de certas categorias profissionais, a definição da natureza substantiva dos ideais tecnocráticos e a inscrição do fenómeno tecnocrático nas teses que se modelam na utopia platónica do rei-filósofo são modos enfáticos de sublinhar aspectos complementares da tecnocracia. A representação da tecnocracia como um caso de poder da sociedade industrial e pós-industrial, como fórmula política de sistemas sociais que relevam as lógicas de poder «de facto» sobre as lógicas de poder «de jure» e como fenómeno que implica a distinção entre o técnico e o tecnocrata são consequências analíticas das perspectivas históricas, estruturais e funcionalistas que comandam a apreciação dos efeitos sociais múltiplos provocados pela hegemonia da denominada racionalidade instrumental nas sociedades pós-medievais que se industrializaram segundo os modelos ocidentais.
Herdeira genética do positivismo a tecnocracia traz nas vísceras uma representação totalitária dos préstimos da ciência que se encaixa num imaginário político redutor. Com efeito, a matriz comteana argumenta a tecnicidade exclusiva do poder com base na defesa do monopólio dos saberes positivistas e com fundamento numa aplicação transversal da ciência. A extensão do objecto e a validade teórico-prática da filosofia positiva são concebidas com tamanha ambição que a religião se transforma em matéria do seu pelouro. Um estudo clássico sobre o fenómeno tecnocrático foi desenvolvido por Wright Mills em «A Nova Classe Média» que faz dos white collars agrupamentos tecnocráticos gerados nas estruturas tecnoadministrativas das administrações. Assalariados como os blue collars e sob as ordens de um gerente que recebe o poder delegado pelo antigo capitão da indústria, esta classe média assume progressivamente as responsabilidades pelas decisões.
O gerente é a figura intermédia que dá existência ao demiurgo administrativo: é o colarinho branco que exerce a autoridade como membro da administração situado entre o empregador e o empregado “mas não é a sua fonte. Como um administrado ele é controlado de cima, e talvez seja considerado uma ameaça; como um administrador ele é visto de baixo. (…) Ele é, ao mesmo tempo, um dente da engrenagem e a passadeira rolante da maquinaria burocrática; é um elo da cadeia de comando, persuasões, circulares e avisos que une os homens que fabricam decisões aos homens que fabricam coisas (…). Mas a sua autoridade está estritamente limitada a uma órbita prescrita de acções profissionais, e o poder que ele exerce não lhe pertence” ( Mills, 1976:100).
Deve-se a John Kenneth Galbraith um avanço do lado norte-americano na conceptualização da tecnocracia como um fenómeno corporizado num estrato da classe médias composto por especialistas e decisores que se não confundem com os burocratas de Mills e são mais do que detentores de poderes delegados: são um estrato de técnicos e de chefias hierarquicamente situados no topo das organizações. O neologismo tecnoestrutura foi o termo que Galbraith criou para significar tecnocracia e no «Novo Estado Industrial» defende a tese de que não é mais o “empresário-individualista, incansável, dotado de visão, astúcia e coragem (…) o único herói dos economistas”.Uma nova personagem grupal passa a ter proeminência na sociedade contemporânea: o grupo formado por especialistas e decisores que detêm informações e poderes diferenciados nas organizações. Galbraith situa a génese do poder do grupo tecnocrático nas exigências tecnológicas articuladas à acumulação de capital, às necessidades de planeamento e às tarefas de coordenação (5)
A pretensão tecnocrática ao poder integral assenta justamente na invocação da superioridade final dos saberes da ordem do observável que o positivismo remete para a inevitabilidade histórica. Na posse de elites técnicas tais saberes concedem aos seus membros a legitimidade para decidir não só o como mas o quê nas organizações públicas e privadas: as medidas políticas e as funções empresariais deveriam passar para a responsabilidade dos tecnocratas. A racionalidade tecnocrática é o positivismo em operação desde o século passado. “ A tecnocracia económica espera tudo da emancipação dos meios materiais de produção. (…) O positivismo é tecnocracia filosófica. Especifica como pré-requisito (…) uma fé exclusiva nas matemáticas. (…) Até mesmo os governantes não escaparam dos efeitos mutiladores que constituem o preço que a humanidade paga pelos seus triunfos tecnocráticos. (Horkheimer, 2000: 66 e 122)
Os pressupostos epistemológicos em que os tecnocratas assentam a noção de ciência e a legitimidade política que invocam, reflectem a essência da filosofia comteana que olhou para o curso dos conhecimentos como um processo de construção gradual da ciência em campos específicos e cronologicamente encadeados numa ordem inviolável de precedência.
Teoricamente superiores e inultrapassáveis, os saberes positivos aplicam-se à humanidade sem discriminação de raças e de credos servindo tanto a concepção/execução de uma máquina como a pilotagem do Estado. A supremacia da ciência positivista funda-se na metodologia empírico-experimental, axiologicamente neutra, da qual colhe conhecimentos supostamente descontaminados dos preconceitos que falsificam o senso comum, as teorias abstractas, as doutrinas políticas e as teologias.
Valter Guerreiro

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