quinta-feira, 17 de julho de 2008

Textos de filosofia política (19)



NÃO SERÁ IDEOLÓGICA A TECNOCRACIA?

Na oposição às ideologias o tecnocrata julga-se a-ideológico, mas a existência de homens sem valores é uma impossibilidade ontológica e decorre da observação que a tecnocracia é uma filosofia que determina um corpo normativo e uma praxiologia necessariamente assentes numa escala de valores. A sua neutralidade é uma aparência que se confunde com a apropriação da ciência como fonte das suas convicções sociais e da sua acção sobre o mundo. Mas a própria eleição da tecnociência como intérprete do ser e do dever ser sociais é uma escolha entre modos de conhecimento possíveis e a sua invocação introduz-se numa visão pragmatista das coisas ligada ao culto da razão instrumental que secundariza os valores humanísticos e hipervaloriza a economia na definição das metas políticas.
Para a tecnocracia, as ideologias são metafísicas do discurso político que encerram todas os defeitos da produção filosófica em geral como género de conhecimento que:
1) Vai para além da experiência.
2) Produz saberes não quantificáveis.
3) Se desvincula de preocupações económicas
4) Não adere facilmente às práticas do quotidiano.
5) Tem um cunho acentuadamente subjectivo.
6) Admite a existência de uma gama de respostas diferentes para os mesmos problemas.
7) Tende a gerar visões idealistas da existência.
Nestas condições, o modo ideológico de lidar com o poder apresenta-se como a antítese da cultura política tecnocrática que adapta o positivismo aos novos contextos depurando-o dos devaneios morais, religiosos e altruísticos da filosofia positiva para guardar a sua essência cientificista em graus variados. Se traçarmos um «tipo ideal» weberiano da tecnocracia que revele as suas concepções e sentidos no estado puro veremos que:
1) Respeita a uma cultura política baseada no domínio técnico das matérias governamentais.
2) Hostiliza os valores identitários dos partidos.
3) Critica a gestão culturalista e humanista das organizações.
4) Estimula estilos existenciais avessos à leitura espiritualista da vida.
A megalomania científica que os tecnocratas herdaram dos positivistas é necessariamente moderada no quadro da «real politik»: a tecnocracia recebeu do positivismo os seus genes intelectuais dominantes mas adaptou-os aos requisitos ideológicos e funcionais das sociedades onde se desenvolveu e hoje convive estrategicamente com as ideologias tradicionais nas democracias plurais.
Nas doutrinas políticas os tecnocratas vislumbram a natureza especulativa da metafísica e o cunho ideológico dos interesses classistas basicamente representados nos partidos e entendidas pelos tecnocratas como equivalentes a passadismo e a ineficácia: são discursos inadequados à construção dos Estados e das políticas modernas.
Descontada a igreja e desprezando a moral comteana de extracção passional debitada na «última hora», a tecnocracia pura fica essencialmente desenhada no positivismo que a obra comteana integraliza. Sem esgotar as componentes do argumentário tecnocrático, o positivismo é a matriz substantiva dos monolitismos teóricos de base técnica conferindo-lhes uma orientação tecnocientífica totalitária. Ao teorizar a exclusão social dos discursos de raiz não experimental, o positivismo arredou a coexistência epistemológica entre a ciência, a metafísica e a teologia teoricamente imanente ao «tipo ideal» tecnocrático.
O modelo seminal dos tecnocratas é, assim, a utopia positivista que pretendeu encarnar o conhecimento experimental sob uma arquitectura monolítica de um poder formalmente empírico, monolítico e universal. Empírico porque projecta o conhecimento controlado pela experiência, monolítico porque exprime a unicidade da ciência e universal porque fala em nome da humanidade.
O conjunto de características descritas não se refere à tecnocracia real em acção no concreto: é uma purificação do ideário tecnocrático que lhe revela os elementos substantivos e compõe o «tipo ideal». É um retrato abstracto que figura o tecnocrata puro animado por uma espécie de panteísmo científico que põe o saber positivo no lugar do divino spinozista. É uma descritiva de traça weberiana que permite comparar a tecnocracia desejada com a tecnocracia realizada. É a tecnocracia planificada dos escritos comteanos em cotejo com a tecnocracia constrangida das sociedades: da herança comteana a tecnocracia recebeu o núcleo duro, que é monolítico e cientificista mas não o pode praticar nas culturas pluralistas de que é filha.
Em todo o caso, a tecnocracia vai-se afirmando no ocaso das ideologias e na intrusão cada vez mais intensa dos símbolos de uma cultura materialista e empirista.
A tecnocracia resgatou a substância da utopia positivista e adaptou-a às circunstâncias móveis das sociedades do século XX sem lograr aproximar-se da hegemonia social, cultural e política prevista do ideal comteano. Na versão capitalista a tecnocracia tem que conviver com o pluralismo e na versão socialista teve que sujeitar-se aos ditames do partido comunista formalmente entrincheirado no marxismo-leninismo.
Neste sentido, o discurso do positivismo e das suas expressões gerencialistas encerram os mitos fundadores do imaginário tecnocrático que na linguagem sainsimoniana se projectam na substituição do «governo dos homens» pela «administração das coisas» e no pensamento comteano se polarizam num «governo de sociólogos».
Dentro da matriz positivista o contributo central para a pertence às reflexões comteanas que seguiram Condorcet na visão que emerge nos seus escritos como uma necessidade histórica destinada a eliminar a metafísica dominante e a substitui-la definitivamente na construção do modelo político das sociedades industriais e na definição das responsabilidades de gestão na economia, na ciência e na religião.
onde os sábios da sociologia serão os estrategos e os coordenadores da acção governativa que buscará alcançar os objectivos que a novel ciência das sociedades traçou. O contributo central das reflexões comteanas para a construção do ideário tecnocrático foi antecedido pelas intuições do seu mestre a quem se devem os primeiros alicerces do discurso fundador construídos em torno da ideia.
Valter Guerreiro

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