terça-feira, 29 de julho de 2008



Na base, Temudo disparava sucessivas granadas de roquete, fazendo-as bater à frente da tropa para atingi-la com os estilhaços, enquanto incitava os guerrilheiros a manterem as posições: “Ninguém retira! Fogo neles”.
Por entre aquele ruído ensurdecedor mal se ouviu a voz do Zig, “maqueiro à esquerda, maqueiro à esquerda”, logo seguida pela do alferes Dinis que insistia: “maqueiro à direita, maqueiro à direita, há dois feridos graves à direita”. Os furriéis pediam, aos gritos, ordem para as armas pesadas abrirem fogo, mas André ainda hesitou uns segundos. Mantinha a esperança que houvesse um milagre, Temudo se apercebesse que tentar resistir equivalia a um suicídio colectivo e se rendesse.
Mas, assim que se ouviu, pela terceira vez, alguém a gritar pelo maqueiro, ordenou com um brado: “Armas pesadas, fogo!”. A seguir entrou em contacto rádio com o alferes Araújo, mandando disparar os morteiros sobre a base.
Durante cinco minutos, a sucessão de explosões fez tremer a terra, arremessando corpos e árvores pelo ar, entre chamas e colunas de fumo negro.
Quando a cadência de tiro inimigo começou a diminuir, o capitão mandou suspender o fogo de armas pesadas e ordenou o assalto, correndo para os destroços do abrigo à sua frente. Mas não chegou lá.
Nessa altura já Temudo tinha ordenado a retirada, encarregando Chifuta da protecção à retaguarda, como garantia que os oito guerrilheiros e a mulher que tinham sobrevivido ilesos ao ataque conseguiriam fugir da base.
Com o dorso crivado de estilhaços, Chifuta introduziu o carregador que lhe restava e mudou a patilha da kalashe para a posição de rajada. Apontou ao primeiro vulto que lhe surgiu e só largou o gatilho quando as munições se esgotaram.
Atingido num ombro e numa perna, André arrastou-se para trás dum montículo de terra entregando o comando ao alferes Dinis.
Recuperou a consciência a bordo de um helicóptero e, quando olhou para baixo, viu um rio que não conhecia. Negro como chumbo, o Kianda rugia em ondas colossais, numa fúria telúrica, qual animal ferido que se agarra à vida e ameaça a própria morte.
Seria delírio, ou o mar?

Álvaro Fernandes, in “Kianda o rio da sede”

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