terça-feira, 15 de julho de 2008


Na Irlanda do rock: Filhos e enteados

Imigrantes a dormir em cavalariças, trabalhando 12 horas por dia a 4,48 libras por hora e com 30 minutos de descanso para uma sanduíche mal-amanhada. Este é o outro lado da realidade por detrás de um dos mais conhecidos festivais de rock da Europa.

Miguel Portas, deputado do GUE/NGL, acompanhou Sónia Mendes, a portuguesa que teve a coragem de denunciar a situação, ao local do evento.


Artigo de Miguel Portas em Naas.


Veja a reportagem da RTP: Portugueses vítimas de exploração na Irlanda.

Na primeira noite, foram 25 mil. Mas com as previstas actuações de Amy Winehouse, dos eternos REM ou de Cat Power, sexta-feira prometia rebentar pelas costuras. Apesar do tempo irlandês, ou seja, ventoso, enevoado e, aqui e ali, chuvoso, desde as 8 da manhã, centenas e centenas de jovens afluíam ininterruptamente ao recinto, de tenda às costas, galochas nos pés e caixas de Budweiser nos braços.

Eis-nos em Punchestown Racecourse, um hipódromo vizinho de Naas, uma pequena cidade a 50 quilómetros de Dublin. É aí que anualmente se organiza o maior festival de rock da ilha, num vasto relvado que a chuva, os carros, as tendas e os jovens deixarão irreconhecível quando as músicas e as luzes se apagarem. É nessa altura que verdadeiramente entram em acção os serviços de limpeza do recinto. Durante os dias de festival, eles garantem a manutenção.

Depois, durante oito dias catarão os restos deixados pela multidão, picando-os um a um, nos espaços dos espectáculos e nos parques de campismo e de estacionamento. É um trabalho árduo e pesado, faça chuva ou sol, mas indispensável porque, um ano depois, haverá mais Oxegen e, entretanto, as corridas de cavalos voltam a tomar conta do lugar.

Por detrás dos palcos

Os milhares de jovens que acorrem aos festivais de Verão - o do Sudoeste é o que, em Portugal, melhor se equivale a este - sabem que os promotores deste tipo de eventos se esmeram na programação, porque é ela que atrai as multidões. Sabem também que as bandas mais conhecidas têm contratos de dezenas de páginas, onde se incluem várias cláusulas excêntricas, escrupulosamente cumpridas pelos organizadores. A menina quer um Mercedes xpto à porta? O líder da banda reclama suite com cama de massagem e Beaujolais de 48 na garrafeira? Faça-se a vontade, porque estes pormenores alimentam o "circo", a imprensa da especialidade e constroem imagens. É assim e assim será.

Também por isto, aqueles milhares de jovens, que não são ricos e trazem a comida nas mochilas, pagam 240 euros pelos quatro dias de concertos ou 100 se por lá ficarem um só dia. O que eles não imaginam é que por detrás do palco, longe dos holofotes, há outros serviços sem os quais nenhum festival desta grandeza se pode realizar. Entre estes, o da limpeza é o menos qualificado e o mais duro. Mas tão indispensável quanto qualquer outro. Os promotores de Oxegen, a MCD, subcontratam este serviço. Este ano a escolha recaiu na Cleanevent, uma firma inglesa que também trata dos estádios de Wembley, do Chelsea ou de Wimbledon.

Este tipo de firmas opera com listas de inscritos que são chamados em função dos trabalhos serviços e concessões que ganham. Pagam o salário mínimo legal - no caso 5,52 libras/hora - e procedem aos respectivos descontos. Sobram 4,48 libras para o trabalhador temporário, se este for um imigrante intracomunitário ou com os papéis em regra. No entanto, se não tiver papéis, a firma prefere. É mais barato, podem ser retiradas horas e é certo e seguro que o imigrante não se queixará à polícia, porque pode ser repatriado. Quem o confirma é Sónia Mendes, portuguesa de 31 anos a viver em Londres há 4 meses, e que faz regularmente trabalhos deste tipo, enquanto aguarda pela prestação de provas para auxiliar de terceira idade, a profissão que gostaria de exercer em Londres.

O "caso"

A Sónia está inscrita na Cleanevent. Quinta-feira, 2 de Julho, telefonam-lhe a perguntar se quereria ir trabalhar para a Irlanda durante 12 dias, a 12 horas por dia e com alimentação e estadia em hotel garantida. Ela e outros 50 responderam afirmativamente. Sempre eram mil e tal euros no bolso. Eram portugueses, luso-brasileiros ou polacos. Intra-comunitários, porque Londres e Dublin estão fora do espaço Shengen e extra-comunitários sem papéis, não passariam pelo crivo do controlo de fronteiras. A 7 de Julho à noite chegam a Punchestown Racecourse.

O "hotel" prometido era a cavalariça do hipódromo, ainda com palha, dejectos e cheiros. Chuveiros eram cinco e só um com água quente. O jantar chegava para 17 dos 50. Em declarações ao The Guardian, a MCD refugia-se no contrato celebrado com a Cleanevent - compete à subcontratada assegurar as condições do seu staff. A Cleanevent diz que "aguarda relatório" para analisar o caso. Este, o caso, é que não esperou. Alguns portugueses, entre os quais a Sónia, revoltam-se. Recusam dormir nos estábulos dos cavalos. Telefonam para a polícia, o que, de imediato, muda a atitude dos promotores.

Aos revoltados oferecem as condições que eles pedirem. Os portugueses dormirão na cozinha, um upgrade... e rapidamente vão comprar umas dezenas de sacos-cama e colchões insufláveis, porque nas cavalariças as camas desdobráveis não chegavam para todos. Cá na minha, alguém estava convencido que o pessoal de limpeza pudesse dormir nas palhas dos cavalos. Os rebeldes, que eram seis, reduzem-se, entretanto, a três.

Regressarão nessa mesma madrugada a Londres, porque recusaram para si a melhoria de condições que a MCD lhes oferecia para se abafar a história. "Ou era para todos ou para ninguém", garante a Sónia, que sabe que nunca mais voltará a ser chamada pela Cleanevent. E porque ficaram os restantes? "A maioria dos polacos veio directamente do seu país. Nem eles nem os outros tinham como regressar, até porque nos tinham dito que nem precisaríamos de levar dinheiro", denuncia. Os que ficaram, contudo, fotografaram. Foram essas fotos que conseguimos passar para fora do recinto, porque o acesso à zona VIP e aos estábulos é vedada ao público. Aliás, fazem paredes-meias.

É bem provável que Amy Winehouse ou Cat Power nem sonhem que por detrás dos seus camarins de cinco estrelas, em cubículos de cimento, estejam a repousar os homens e mulheres que acabaram de lhes limpar a casa. Muito menos suspeitarão que quem lhes trata do conforto trabalhe em turnos de 12 horas contínuos, com 30 minutos de intervalo não pagos, quanto basta para uma sanduíche mal amanhada...

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