sexta-feira, 4 de julho de 2008

O Barão dos Leitões



O júri dos jogos florais considerou inaceitável a “Crónica de um colono exemplar”. E devolveu-a a Temudo, seu autor.
Nela se narravam as andanças de um tal Marmelo, natural da povoação dos Leitões, situada a meio caminho entre Cantanhede e Mira.
O homem, de nome Heliodoro Neto, jamais se separava do varapau de marmeleiro que lhe chegava aos queixos babados de fama, em todas as feiras e romarias das redondezas. Daí, o epíteto de Marmelo.
Trolha no ganha-pão, não encontrava rival a jogar o pau capaz de resistir ao volteio primoroso. Enganava defesas altas com uma sarrafada às pernas. Desbaratava ataques em paragens certas. E furava resistências com estocadas certeiras. Aliava, com arte, a força do braço à agilidade das pernas.
Foi temido e invejado, até ao azado dia em que um peralvilho da Figueira da Foz ousou bisar o vira-de-dois com a Rosália.
Há muito que o Marmelo lhe arrastava a asa, ignorando saias bem mais rodadas e abertas ao culto do marmeleiro. Mais tarde, disseram comadres dos Leitões que a Rosália “fez de propósito para enciumar o Marmelo”.
"Vá-se lá saber como pensam as mulheres", comentaram alguns cépticos.
Da honra ferida à desafronta, foi o ápice duma cacetada, assestada no toutiço do conquistador.
Quem previa que a copa do airoso chapéu de feltro não amorteceria a pancada?
 Por via dela e porque os carecas têm a moleirinha mais sensível do que os cachopos, o bailador esticou-se ao comprido, em arreganhos de morte, declarou uma testemunha ocular.
“Pira-te, antes que vás parar à choça!”, aconselharam os amigos.
E foi o que Marmelo fez, sem chegar a saber que o atrevido forasteiro recuperara os sentidos, saindo de prolongado desmaio já no hospital de Coimbra.
Refugiando-se em Aveiro, contactou um angariador de emigrantes clandestinos para o Brasil.
Mas os ventos da fortuna rumaram a bombordo e quarenta dias durou o enjoo, no porão de um vapor, até Marmelo ser desembarcado em Luanda.
Passou três dias enjaulado na alfândega, por lhe faltar carta de chamada, ou seja, promessa escrita de contrato de trabalho. Valeu-lhe a necessidade de mão-de-obra especializada, sentida pelo conselheiro real que governava a colónia.
Saiu-se tão bem da empreitada, que foi sucessivamente promovido a pedreiro e mestre-de-obras do palácio governamental. Quando teve de se resignar à partida do seu benfeitor, definitivamente chamado a Lisboa por força do 5 de Outubro, não ficou a perder.
Com delegação da Real Casa de Bragança, o conselheiro outorgou-lhe o título de Barão dos Leitões. Como paga derradeira, lavrou-se escritura  datada de 4 de Outubro de 1910  de transacção de um prédio com dez divisões muito solarentas.
Os aposentos virados a nascente foram caiados de cor-de-rosa, antes de Rosália, casada por procuração, se unir ao cônjuge e dar à luz o segundo barão dos Leitões.
Heliodoro, o neto, recebeu na cabecinha, encharcada de água benta, o privilégio de usar Marmelo. Comovente homenagem à memória do primeiro barão dos Leitões, seu avô paterno.

Álvaro Fernandes, in “Berços de renda, enxergas de trapos”

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