sexta-feira, 11 de julho de 2008
UMA PEQUENA HISTÓRIA SOBRE A TECNOCRACIA E A MÍSTICA RELIGIOSA
Ainda a tecnocracia estava longe de se instalar no nosso país e se exprimia timidamente sob fórmulas burocráticas mais clássicas e antigas, escrevi um pequeno texto a propósito da vida de um conterrâneo meu e das impressões que o seu comportamento intra e extra laborais me deixaram.
Tais impressões, de cerca de quatro décadas atrás, têm um único interesse: marcam as minhas convicções sobre a antítese entre certos valores profissional e socialmente praticados que roçam a tecnicidade impessoal e a espiritualidade.
Descrevi a coisa quase textualmente assim:
Um jovem burocrata senta-se placidamente diante da imensa papelada e resolve com gestos sóbrios e frases curtas os problemas que o dia de trabalho lhe coloca. Tem uma extraordinária semelhança com a imagem clássica de Jesus Cristo e faz-se acompanhar por textos de Kierkegaard. Nos raros momentos livres que as angústias dos contribuintes lhe concedem folheia o “Temor e Tremor” e demora-se nalgumas páginas com ar místico.
Por volta das cinco horas da tarde sai da repartição em ritmo magestático, doce e uniforme com a cabeça bíblica ligeiramente curvada sobre o lado direito. Caminha como se levasse dentro do peito todos os pecados da humanidade e estivesse a praticar actos de substituição das papeladas por qualquer devaneio da ordem do espiritual.
Parece expiar o mundo em peregrinações diárias, um pequeno mundo olhanense que o observa nos circuitos solitários e pendulares: «rua das lojas», ruelas piscatórias com cheiros de maresia e de peixe, praça vermelha de traça moura e, finalmente, a «doca velha».
Em cima da escada castanha de pedra comida pela força do sal, dos detritos, dos ventos, das marés e dos barcos que nela atracam, o Cristo, como lhe chamam, desenrola o corpo que curva ligeiramente nas suas caminhadas. A escada é o seu púlpito e a Ria Formosa o seu povo e pronuncia-se contra a próxima escravização dos homens pelas máquinas, pelo dinheiro e pela frívola vaidade da fama como se visse há quarenta anos o que hoje ocorre.
O Cristo concedia a poucos o privilégio de lhes falar individualmente: eu fui um deles. E quando lhe perguntei se bastavam os demónios repetidos dos seus discursos para explicar o comportamento excêntrico, disse-me que os seus êxtases religiosos em busca do transcendente eram também um modo de se compensar da prosaica rotina de funcionário público.
Na Ria Formosa travava uma luta entre a ascese burocrática e a ascese religiosa: um anti-tecnocrata por antecipação de tipo místico e, com traços patológicos? Carlos, o Cristo, teria operado uma escolha livre ou foi constrangido pela doença?
Como quer que seja, não conseguiu conciliar o prazer com a salvação da alma e parece ter-se dividido em duas metades: na primeira assegurou na perfeição a ascese burocrática e comportou-se como um normalíssimo serventuário do Estado que obedece à ética da responsabilidade. Na segunda metade encenou o seu Cristo e deixou-se levar pela ética da convicção.
Não estão aqui em causa juízos de valor sobre a mística religiosa, como é evidente. Mas estarão aqui Kierkegaard e Weber? Mística contra tecnocracia?
Valter Guerreiro
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