quinta-feira, 10 de julho de 2008

Textos de filosofia política (16)



A TECNOCRACIA E OS MODOS DE EXERCÍCIO DO PODER

Com a criação do conceito, a direcção das intervenções humanas na totalidade social ficou com uma palavra para rotular um modo de poder específico sustentado directa e/ou indirectamente por uma categoria, camada ou classe funcionalmente apta a lidar com as técnicas e as tecnologias que alimentaram e formataram as sociedades industriais e, com muito maior intensidade, definem os padrões das sociedades pós-industriais: o agrupamento dos cientistas investigadores e técnicos.
Do ângulo analítico que privilegia a descodificação dos mecanismos de decisão prevalecentes, a tecnocracia exprime uma forma de poder com o epicentro nos técnicos. A eminência desta categoria socioprofissional nas decisões fundamentais teria um duplo fundamento: a posse de saberes científicos e o domínio das tecnologias vitais ao funcionamento das sociedades modernas.
Em sociedades que repousam sobre economias fundadas em saberes e tecnologias sofisticadas, pode pressupor-se que quem os domina detém o «poder de facto». Num mundo submetido a intensos mecanismos de aceleração e ao rápido desgaste das ideologias os técnicos, senhores do controlo de conhecimentos, informações e tecnologias voláteis deteriam as rédeas das decisões na esfera da economia e da política ainda que as sedes dos poderes formais se situem noutros sujeitos: povo, órgãos de soberania, detentores do capital e dirigentes.
A análise e o diagnóstico das interacções sociais não podem deixar de se incluir nos limites do conceito. Na verdade, uma teoria do poder supõe que a reflexão sobre a natureza do domínio exercido por homens sobre outros homens e que a determinação das origens sociais de tal domínio se façam em conjunção com específicas interpretações dos fenómenos colectivos. No caso das concepções tecnocráticas, os poderes de facto actuais residiriam nos homens que dispõem dos saberes e manejam as ferramentas essenciais à tomada das decisões. Esta representação das origens do poder fáctico e da sede social do seu exercício filia-se em critérios funcionais: tem o poder real quem conhece e sabe usar saberes e tecnologias vitais ao desempenho de funções indispensáveis ao desenvolvimento dos sistemas industriais e pós-industriais.
Desde Platão que esta noção de um poder baseado nos saberes funcionalmente adaptados ao que cada um pensa serem as necessidades funcionais das sociedades ganhou adeptos e o positivismo retomou-a dando aos sábios da ciência social o protagonismo político que o filósofo grego dera aos sábios da alma.
Na óptica tecnocrática, os sujeitos do poder deveriam ser os homens da ciência e, muito particularmente, os técnicos que nas várias áreas operam os saberes e as tecnologias. Idealmente os tecno-sábios deveriam dispor dos poderes formais e fácticos desde os patamares das mais altas instâncias políticas até aos domínios administrativos e empresariais.
A tecnocracia em estado maximal não pode deixar de ser normativa e de dispor dos poderes políticos explícitos e directos. Em estado minimal pode contentar-se em afirmar-se nos poderes facticos e na pressão indirecta mas incontornável sobre os decisores políticos.
Sendo o poder uma categoria decisiva para a interpretação da totalidade social, é evidente que as diversas teorias sobre as vertentes em que o poder se desdobra arrastam representações específicas de inúmeros fenómenos colectivos. Assim, as noções de Estado, propriedade, classes sociais, política, cultura, economia e direito estão tão incontornavelmente dependentes da mundividência tecnocrática como estão das concepções marxistas que associam o poder à posse da propriedade dos meios de produção e das teses de tradição maquiavelica que filiam o poder nos seus titulares jurídicos e subsumem o poder de facto no poder formal.

Valter Guerreiro

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