segunda-feira, 7 de julho de 2008

O Muata Kazumbí


O Muata Kazumbí tinha tantos anos que nem os mais idosos eram capazes de os contar. Vinha de tempos idos, tão idos, que já ninguém deles se lembrava. Mesmo o último soba, que se deixara morrer de tristeza, desgosto de guerra logo que os tiros começaram e o povo abandonou a sanzala, apenas sabia informar do seu parentesco com Luegi, filha de Ialo Maku, de quem houve um filho Noegi a quem foi dado o título de Muat-Iânvua.

Kinguri, irmão de Luegi, não se conformando com a união dela a um estrangeiro, deliberou com alguns parentes afeiçoados abandonar a corte para vir formar um grande estado na região do Kianda. O que causou descontentamento suficiente para quebrar a harmonia dos vassalos, dando oportunidade a Cambamba, uma tia de Luegi, para enviar em perseguição do dissidente os descontentes mais aguerridos.

O que aconteceu ao certo ninguém era capaz de garantir, mas sabia-se que tinha havido grande maka, luta renhida, com vitórias e derrotas de cada lado, sem vencidos nem vencedores. Num desses confrontos raptaram a mulher grávida de Kinguri, que acabou por fugir e andar perdida na floresta antes de parir na nascente do rio, onde morreu logo a seguir. Também se dizia que quem tomou conta do menino foi uma leoa a quem os caçadores haviam matado o macho. Como se isso fosse possível! Mas o povo ficava contente por acreditar no que se dizia: “Mesmo quando a gente diz que não acredita, gosta de repetir o que ouviu, então não é?” - explicavam os mais velhos.

Estas foram as histórias que o povo começou a contar quando o Muata Kazumbí, ainda menino, foi encontrado a nadar sozinho no rio. Só ele podia conhecer a verdade verdadeira, mas nunca quis contá-la toda. Vá lá saber-se porquê, dizia apenas que era filho do rio a quem a mãe se unira depois de perder o marido. Ninguém acreditava, via-se logo que estava a inventar. E riam-se, achando graça à imaginação do pequeno Kazumbí. Mas que criança teria sobrevivido na floresta sem protecção de uma leoa? “Quem, digam lá se forem capazes?” - desafiava o menino. Aí, ficavam todos a pensar, sem resposta, imaginando coisas daquelas que existem mas não se conhecem.

De qualquer maneira o povo, incapaz de desvendar o mistério, considerava-o a reencarnação de Kinguri, fundador da tribo e, portanto, elevou-o à dignidade de Muata. Chamaram-lhe Kazumbí porque o sortilégio da sua sobrevivência só podia dever-se a forte feitiço. Disso ninguém duvidava. E mais: feitiço bom, capaz de lhes dar um chefe dotado de poderes sobrenaturais para sobreviver.

Álvaro Fernandes, in “Kianda, o rio da sede”

1 comentário:

Anónimo disse...

Este texto é de uma beleza estranha para quem não conhece nem passou por África. É preciso mergulhar bem nas palavras, para chegarmos até lá, sentir os cheiros , os sons e a magia da selva e dos seus indígenas.