quarta-feira, 2 de julho de 2008

O Declínio Inequívoco de Portugal



Medina Carreira**

Público de 13/06/2008

Há mais de três décadas que o produto desacelera e em 2020 poderemos estar na cauda da Europa


Há um notório e crescente mal-estar no nosso país. Apesar do optimismo e das promessas, os salários continuam baixos, as pensões são exíguas, o poder de compra estagna, o desemprego é elevado, a classe média dissolve-se, a pobreza alastra, as desigualdades acentuam-se, as famílias estão pesadamente endividadas, a emigração recomeça e os temores aumentam. A crise internacional chegou e atingirá alguns com especial violência.

É a mediocridade da economia que temos.

Quando se analisa a sua evolução, torna-se inequívoco o declínio. Quando se imagina o futuro europeu de Portugal, ele é cinzento. Há mais de três décadas que o produto desacelera, conforme as seguintes taxas de crescimento médio anual: 7,5 por cento (1960-70); 4,5 por cento (1970-80); 3,2 por cento (1980-90); 2,7 por cento (1990-2000); e 0,9 por cento (2000-06). Outros países europeus também não conseguiram muito melhor.


Cerca de 2020, se a nossa economia e as dos seis outros que agora nos seguem se comportarem como de 2000 a 2006, seremos o país mais pobre dos "25". Só o evitaremos se o produto subir a uma taxa mínima da ordem dos três por cento, ou os demais caírem significativamente. Isto é: mais ano, menos ano, poderemos estar na cauda da Europa. Há, por todas as razões, uma prioridade absoluta para a nossa economia.

Esta evolução tem origens diversas: externas e internas, públicas e privadas. Importam aqui, sobretudo, as de natureza política, relativas aos "defeitos" que existem na área do Estado ou que dele derivam, porque numa economia aberta e pouco competitiva, como a nossa, não se convive longamente com eles sem provocar efeitos desastrosos.

Acontece, em todo o caso, que o Estado português está rodeado de circunstâncias adversas, condicionantes das mudanças indispensáveis. Desde logo, falta-lhe "tempo" político: o sistema de governação criado em 1976, a impreparação dos partidos para governar e o eleitoralismo que cada vez mais os domina originam uma frequente e inconveniente descontinuidade executiva[1].

Também não há "verdade" política: quanto aos problemas essenciais, os partidos do poder assumem compromissos eleitorais que não tencionam ou não podem cumprir e fazem no Governo o que antes rejeitam ruidosamente na oposição. Assistimos a um espectáculo de mentira sem decoro, gerador do descrédito dos partidos e da decadência da democracia. Escasseia, igualmente, "qualidade" política: os partidos que existem, tal como já acontecia em 1926, são "agrupamentos sem raízes na realidade do país" que propiciam o "aparecimento na cena política de homens de segundo plano"[2].

Há assim uma doença grave na nossa vida política que também conduz ao desaproveitamento de enormes e irrepetíveis meios financeiros. Efectivamente, desde 1990 o nosso Estado arrecadou cerca de 160.000 milhões de euros (M€) - aproximadamente 820 M€/mês - de receitas não tributárias[3]. Determinou ainda um grande aumento da carga fiscal, de 29 por cento (1990) para 37 por cento do PIB (2006): +8 pp., que não têm paralelo na Europa durante esse período. Quase tudo o que exige tempo, verdade e qualidade, ou tarda muito ou nunca acontece.

Não se pode considerar o curto e o médio prazo porque os governos nada podem fazer, perdidas que foram as principais ferramentas de política macroeconómica: a moeda nacional, os juros, os câmbios, as tarifas aduaneiras e, na sua maior parte, a margem de discricionariedade orçamental. E isso é muito claro quando observamos o que aconteceu desde 2000: o produto português limitou-se a acompanhar as tendências europeias, crescendo quando ali se cresceu e caindo quando ali se caiu (cf. gráfico anexo). Nesse tempo, apesar dos quatro governos que tivemos, a nossa economia, uns pontos abaixo, só "obedeceu" à dos "25". Foi em absoluto indiferente a quem e como governou.

A receita habitual e de que muitos falam - o aumento da procura interna, fazendo o Estado gastar mais – não é viável porque continuamos a ter contas públicas muito desequilibradas e porque, como nos ensina quem sabe, sendo insuspeito de simpatias neoliberais, "um aumento grande da despesa pública [não resolve] o que quer que seja em termos de crescimento económico"[4]. Apesar destas evidências, o Governo vai lançar um projecto irresponsável e eleitoralista de "betão" em larga escala, para realizações muitas vezes supérfluas e de aparente êxito imediato. É mais um dispendioso logro, parece que com o silêncio da oposição.

De tudo resulta, portanto, que o Governo não falha porque a economia é medíocre e o desemprego está alto. O Governo falha, e muito, porque atravessa uma longa legislatura, como a actual, em tudo favorável, deixando sem remédio, em 2009, a maioria dos mais graves "defeitos" que já encontrou em 2005. Perdemos outra vez tempo: não se solucionou a conjuntura nem se preparou a estrutura.

A nossa evidente fragilidade económica tem hoje efeitos negativos e muito sensíveis no plano salarial, no nível do emprego, no poder de compra[5] e na acentuação da pobreza. Porém e pior do que isso: ela está a minar, a prazo, a base de sustentação das políticas sociais, já de si cheias de problemas.

Quem quiser pode entendê-lo com facilidade: entre 1990 e 2005 o produto português evoluiu à taxa anual de dois por cento e as despesas sociais[6] à de quase seis por cento; essas despesas absorviam 60 por cento das contribuições sociais e dos impostos em 1990, 71 por cento em 1995, 70 por cento em 2000 e 84 por cento em 2005.

O Estado social é, provavelmente, a mais notável realização europeia dos últimos sessenta a cem anos. Mas não nos deveremos enganar: ele só pode sobreviver se assentar numa economia próspera. E isto é decisivo porque, se não conseguirmos aumentar significativamente o ritmo de expansão da riqueza nacional, o presente nível de "redistribuição" - mesmo insuficiente, como já é - terá de ser reconsiderado em baixa, mesmo em muito forte baixa.

Sem mais "economia" só pode haver menos "social".

É certamente viável redistribuir "melhor", discriminando positivamente. Mas não se redistribuirá "mais".

São bem conhecidos os sectores e os vícios que mais afectam a produtividade e a competitividade da nossa economia. Os que se situam na área pública ou que do Estado dependem, só por ele poderão ser solucionados, através de medidas e de reformas que eliminem ou reduzam as suas consequências negativas. Mas numa economia internacionalizada, como é a actual, tudo o que dele pode exigir-se ou esperar-se é a criação das condições indispensáveis à atracção dos investimentos que nos convêm: os de mais rápida reprodutividade, destinados às exportações e à substituição de importações.


É por isso surpreendente que entrem e saiam governos, ficando sempre tudo na mesma ou quase. Sem carácter exaustivo, é óbvia e imperiosa a necessidade de mudar muito no ensino, o nosso maior reprodutor de mediocridade e que está a "hipotecar" o futuro daqueles que finge promover; na formação passa-se quase o mesmo, fazendo-se crer na possibilidade de aprender em poucos meses aquilo que só se aprende em alguns anos; na justiça permanecem as demoras sem fim e sem previsão, que a tornam, em grande parte, desacreditada, inútil e aleatória; o sistema dos impostos é pesado, complicado sem vantagens, sempre instável, por vezes abusivamente agressivo e iníquo devido ao elevado peso da tributação indirecta; a administração pública continua sem reorganização, requalificação, rejuvenescimento e reequipamento, porque quase tudo isso passa ao lado do PRACE; a grande burocracia está cristalizada, como se confirma com a existência perversa dos PIN, necessários só para quem o Governo entende contemplar; a grande corrupção está para ficar e mesmo para crescer, indiferente às medidas com que apenas se simula querer combatê-la; mantêm-se incompreensivelmente os pagamentos atrasados do Estado, tão lesto a pregar moral aos privados que se atrasam; a multidão dos licenciados sem trabalho não encontra qualquer resposta que os reconverta profissionalmente; o mercado do arrendamento continua a não existir e nada se faz aí com consequências relevantes; não temos técnicos adequados às exigências do mercado; o excessivo peso financeiro do Estado, o espantoso mapa autárquico desenhado para o tempo da "diligência" e das carroças, o regime das relações laborais, a preferência constante pela facilidade e pela mediocridade, entre outros, constituem "defeitos" graves, sem qualquer remédio à vista.

Estas são questões de fundo que só ao Estado competem e em que só ele tem uma palavra a dizer. Pouco ou nada fazendo, revela a sua incapacidade política para propiciar o ambiente indispensável à criação do aparelho produtivo e competitivo que a nova economia exige.

Sem "tempo", sem "verdade" e sem "qualidade" na política, como até aqui, nenhum Governo conseguirá realizar em Portugal a obra que o futuro nos impõe. E porque a conjuntura está hoje fora do poder do Estado, é preciso que alguém responsável, por uma vez, diga que a recuperação é difícil, que a tarefa é árdua e que os resultados são demorados. O estado da nossa decadência é profundo e as circunstâncias envolventes são complexas.

Os que têm surgido vêm apenas para ganhar eleições, promover-se e repartir vantagens pelos amigos e pelos arrivistas de sempre. Usam sem escrúpulos sofismas que só retardam a compreensão das coisas e dificultam a aplicação das decisões essenciais. Montam circos atraentes para impressionar, acenam com facilidades que não existem e prometem um amanhã que nunca chegará. Servem-se e servem outros. É quase tudo.

Se a "verdade" nos assusta em vez de nos mobilizar, resta-nos apenas a capitulação perante os sofistas que temos tido e perante os seus "herdeiros". Só haveremos, então, de queixar-nos de nós mesmos. Se os eleitores o não entenderem muito depressa, ficaremos com "Lisboa" nos papéis e com os portugueses feitos - os pobres da Europa.

** Fiscalista



[1] Houve 17 governos em 32 anos: média de 23 meses por cada um. Descontados os de maioria absoluta de um só partido: média de 15. Entre 2000 e 2009 registar-se-á uma média de 30 meses.

[2] Mário Soares, Lê Portugal Baillonné -Témoignage, Calmann-Levy, Paris -1972, pp. 30 e 31.

[3] Entre 1990 e 2006 são as seguintes as receitas a considerar: 17.000 M€ das privatizações, 51.000 M€ de fundos europeus e 90.000 M€ de acréscimo da dívida pública

[4] João Ferreira do Amaral, As condicionantes orçamentais, Seara Nova, n.°81, Verão de 2003, p. 37

[5] Para se imaginar a influência do crescimento da economia sobre o poder de compra dir-se-á que, aos preços actuais, + 0,1% do PIB equivalem a cerca de 18 € por português e por ano, ou seja, um café tomado ao balcão, de 10 em 10 dias. E + l% do PIB, l café por português e por dia!

[6] Incluem-se as despesas com as Funções Sociais do Estado (Educação, Saúde, Habitação e Cultura), Segurança Social e Caixa Geral de Aposentações.

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