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A sala está apinhada e abafada numa tarde soalheira de primavera, e muitos dos que se comprimem dentro dela devem ter lamentado ter trazido os seus agasalhos. Os mais afortunados ocuparam as poucas cadeiras disponíveis. Os restantes permanecem de pé, lado a lado, ouvindo atentamente uma longa tirada declamatória sobre a ameaça do imperialismo americano e sobre como a crise económica global produzirá um maior confronto entre a China e o Ocidente.
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Sentado à frente de um enorme cartaz com a figura do jovem Mao Zedong, Zang Hongliang sabe como apelar aos sentimentos nacionalistas e antiliberais da sua audiência. O seu discurso incoerente e desconexo vagueia entre a adulação a Mao, ao escárnio da América (“não tem História nem cultura”), passando por advertências ao “terror branco” se a “direita” (os liberais) triunfarem. A crise económica é “inteiramente da responsabilidade do Ocidente”, e “quanto mais o Ocidente se afundar nela, mais a China prevalecerá”. A guerra com a América “será perdida pelos dois lados, mas a China não deve ter medo dela”. Os “progressistas” da China estão a “tornar-se mais activos à medida que a economia global progride”. O Sr. Zang pertence à pequena minoria laudatória do igualitarismo Maoístas, da propriedade estatal dos meios de produção e da certeza de que a América é um inimigo. Este seminário foi organizado pela Bandeira de Mao, uma das muitas organizações de mobilização cívica, de tendências nacionalistas e retórica pró-comunista, convictas de que a China é uma vítima na cena internacional que lhe é hostil e que só deseja vingança. Os frequentadores destes fórums motivaram-se numa série de celebrações espontâneas que aconteceram por todo o país quando se celebrou o 115º aniversário do nascimento de Mao. O governo chinês preferiu desvalorizar estas celebrações e não se envolveu, pelo menos directamente, na sua organização e conteúdo.
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Poucos poderiam sugerir que, na China, os radicais Maoístas tentam regressar à cena política. Mas o seu nacionalismo tem ainda uma forte atracção em largos extractos da população. Quando a China observa o mundo actual, com o Ocidente em instabilidade financeira e os seus líderes aparentemente desesperados para que a China venha em seu auxílio com os seus enormes excedentes financeiros, ela concluiu que esta é a sua oportunidade estratégica. Mesmo antes da crise financeira ter batido à porta do país no fim do ano passado, o nacionalismo estava muito alto. Foi a resposta aos desafios levantados pelas manifestações no Tibete em Março, o apoio dado pelo Ocidente ao Dalai Lama e o triunfo desportivo da China com a organização dos Jogos Olímpicos em Agosto. Agora o desgastado Ocidente apresenta-se como um gratificante alvo para sua incontida alegria. Até o normalmente prudente governo chinês começa a mostrar alguns músculos nos palcos internacionais.
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Na maior parte dos últimos vinte anos (as únicas excepções são os litígios com Taiwan em 1995-96 e com os EUA em 2001) a China manteve sempre uma postura de contenção e prudência no cenário internacional. Os governantes chineses gostam de resumir a sua maneira de lidar com as questões políticas internacionais com quatro frases simples da autoria de Deng Xiaoping: (1) a China deve manter um perfil modesto, (2) não deve tomar a liderança em assuntos internacionais, (3) deve observar os acontecimentos pacientemente e (4) não deve mostrar as suas capacidades. Mas a actual crise económica global e a evidente fraqueza do Ocidente para a enfrentar fizeram com que os governantes chineses revissem este código diplomático de procedimento.
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Em público, os governantes chineses ainda tentam adoptar uma atitude cordata e de contenção. Na sua visita à Europa no fim de Janeiro e princípio de Fevereiro, o Primeiro-Ministro (PM) chinês, Wen Jiabao, realçou que o desenvolvimento da China não ameaçava ninguém. A atitude da China seria sempre, como ele afirmou na Universidade de Cambridge (uma visita mais recordada pelo sapato atirado em sua direcção por um estudante alemão), “uma grande potência cooperante e pacífica”. Alguns diplomatas ocidentais, de ouvidos mais sensíveis, questionaram o significado da expressão “grande potência” mas chegaram à conclusão que fora frequentemente usada pelo primeiro-ministro para se referir à China mesmo antes da presente crise. Como deferência para com os sentimentos estrangeiros, um texto em inglês publicado pela agência noticiosa governamental Xinhua usou a palavra “país” na mesma frase.
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No entanto, sobre a questão do Tibete a China não tem sido tão coerente, tendo feito concessões às opiniões ocidentais quando aceitou manter três reuniões com representantes do Dalai Lama após as manifestações de Março. Depois disso, a China perdeu o interesse em continuar esses contactos. O aumento de medidas de segurança que foram impostas a todo o planalto tibetano serviu para impedir quaisquer manifestações durante o mês em que se celebrou o 50º aniversário do levantamento popular que causou a fuga do Dalai Lama para o seu exílio na Índia. Todos os vistos foram negados aos jornalistas estrangeiros, apesar dos inúmeros pedidos de acesso.
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Em Fevereiro, a China deu uma calorosa recepção à Secretária de Estado, Hillary Clinton. A China tinha boas razões para se sentir orgulhosa. Ali estava uma importante figura política americana a pedir ajuda à China para enfrentar a crise financeira. A Senhora Clinton, que uma vez se tinha gabado de quão enfaticamente tinha colocado a questão dos direitos humanos durante uma visita a Pequim em 1995, sugeriu agora que o mau comportamento da China na matéria não devia interferir nas conversações sobre a cooperação para enfrentar a crise financeira e o aquecimento global. O PM, Wen Jiabao, certamente agradeceu a atitude complacente da Senhora Clinton.
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Duas semanas após o regresso a casa da Secretária de Estado, navios chineses (de acordo com o Pentágono) perseguiram e hostilizaram um navio desarmado da Marinha de Guerra americana, o Impeccable, no Mar do Sul da China. O navio navegava a 75 milhas (120 km) da costa e estaria provavelmente a tentar detectar submarinos chineses. Mas de acordo com as queixas da China, a marinha americana desloca com frequência navios para águas internacionais ao largo da costa chinesa para vigiar e detectar actividades militares. Neste caso os chineses responderam mais agressivamente do que o habitual, cercando e aproximando-se tanto do navio americano que dava a sensação que pretendiam colidir com ele.
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A China, obviamente, não deseja “forçar” demasiado este género de incidentes mas apenas fazer a pressão suficiente para manifestar o seu desagrado, talvez por se lembrar da crise diplomática que ocorreu em 2001 quando um caça chinês bateu num avião espião americano provocando-lhe uma pequena avaria que o forçou a aterrar numa base aérea chinesa. A tripulação americana ficou imobilizada por 11 dias até que o incidente se resolvesse por meios diplomáticos. Desta vez a resposta chinesa consistiu em enviar para o local um barco patrulha das pescas (uma modesta oposição para um destroyer) para a área. Segundo alguns comentadores chineses, como Shi Yinhong da Universidade de Renmin, este incidente “é um sinal da nova força com que o governo chinês pretende gerir as relações com países ocidentais”.
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Embora a China tenha relutância em vincar demasiado as suas convicções em relação aos EUA, com a Europa passa-se exactamente a contrário. A sua decisão abrupta de cancelar uma cimeira com a União Europeia (UE) agendada para o último mês de Dezembro mostra que, mesmo com a presente crise global, a China estava preparada para dar uma forte reprimenda aos líderes do seu maior parceiro comercial. O pretexto foi a audiência dada pelo presidente Nicolas Sarcozy ao Dalai Lama (a França desempenhava na altura a presidência rotativa da União Europeia). A UE e a China acordaram marcar nova data perto do fim deste ano para essa cimeira, mas o presidente Sarkozy ainda não confirmou (não perdoou?). Entretanto, Wen Jiabao, o PM, evitou cuidadosamente a França durante o seu recente périplo pela Europa. “Eu consultei um mapa da Europa no avião. A minha viagem passa à volta da França sem entrar nela”, disse. [Repare-se que este rigor é tipicamente chinês]
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O conselho de Deng para evitar tomar a liderança foi sem dúvida abandonado. A China reagiu com calma à sugestões de que a solução para os problemas económicos globais está essencialmente nas mãos de duas potências, China e a América, a que alguns chamam G2. O nome nasceu de um artigo da autoria de Fred Bergsten, do Peterson Institute for International Economics, publicado no jornal Foreign Affairs do último mês de Julho, no qual o autor argumentou que a China continuava a agir “como um pequeno país com reduzido impacto no sistema global porque situado à distância e, por isso, com pouca responsabilidade sobre esse sistema”. Contudo, mesmo antes da presente crise, a China levantou vários e crescentes desafios às regras e instituições internacionais, diz Bergsten: bloqueou o progresso das conversações de Doha sobre trocas comerciais globais; aprovou auxílios e financiamentos a países estrangeiros (principalmente africanos, e o Brasil por causa da soja) sem considerar o estatuto de direitos humanos ou a protecção ambiental nesses países; continua a não aceitar uma taxa de conversão cambial flexível para a sua moeda que está claramente subvalorizada. Ao contrário, afirma Bergsten, seria vantajoso para as duas partes que a China e os EUA “se articulassem para assumirem a liderança conjunta do sistema económico global”.
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O responsável máximo do Banco Mundial, Robert Zoellick, e o seu chefe economista, Justin Yifu Lin, entusiasmaram-se com a ideia do G2 num artigo no Washington Post de 6 de Março. Embora os autores não tenham referido a crítica de Bergsten da “obstinação” chinesa, eles afirmam que “sem um forte G2, o G20 será uma desilusão”. Mas alguns altos funcionários chineses vêem uma armadilha nestas pretensões americanas. A revista Liaowang, publicada pela agência noticiosa do governo chinês Xinhua, diz que os técnicos chineses que se dedicam ao estudo da economia global acreditam que a ideia [do G2] “fará mais mal do que bem” porque a América “nunca cederá o controlo da ordem mundial e, em qualquer caso, a China nunca procurará exercer poder hegemónico”.
Continuará no Nº 2
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