quarta-feira, 29 de abril de 2009

TOLERANTE E LIBERAL, MAS POUCO


Avenida do Dubai. As novas avenidas têm 3 faixas em cada sentido. Não há transportes coletivos, o automóvel ligeiro é rei.
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O Dubai tem a aparência enganadora de uma cidade cosmopolita e liberal. Quando desembarcamos no aeroporto, a sua modernidade arquitectónica surpreende-nos. O interior da gare, as lojas, as áreas de atendimento e os restaurantes do aeroporto são construídos com materiais nobres e caros. A decoração é luxuosa. Parece que nada foi poupado. Quando saímos do aeroporto e nos dirigimos para a cidade, julgamo-nos chegados ao Novo Mundo de que fala Dvořák na sua Sinfonia Nº 9. Os edifícios altos de 30 e 40 andares, com fachadas de vidro, dão à cidade uma harmonia futurista. As principais avenidas da cidade nova (por oposição ao centro histórico, a vila antiga) têm três faixas em cada sentido. A cidade é fotogénica e sentimo-nos tentados a registar tudo em fotografias. Admiramo-nos perante esta cidade planeada, cuidadosamente pensada para ter uma estética especial apontada para o futuro.
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O que não é evidente é a realidade que se esconde por trás dos edifícios de talha moderna. A imagem de um oásis liberal e pecadoramente atraente está a desaparecer, não exactamente porque o dinheiro esteja a desaparecer nesta crise global. Tardiamente preocupada que (i) o seu 1 milhão de residentes estrangeiros solteiros mais (ii) milhões de turistas anuais estejam a diluir a sua identidade, o emirato, com reputação de liberalidade de costumes, planeia cortar o entusiasmo dos estrangeiros. Uma comissão presidida pelo príncipe herdeiro, Sheikh Hamdan al-Maktoum, propôs um código de conduta aplicável aos lugares públicos para apertar as liberalidades no vestir, no beber, no dançar e na demonstração de afecto em locais públicos como tocar e beijar.
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Embora ainda não vigore como lei, o código realça no preâmbulo a tolerância e respeito pela diversidade como pedras angulares do sucesso do Dubai. Mas também estipula que os comportamentos impróprios que desprezam costumes locais podem levar a multas, acções judiciais e deportações. Isto não é nada de novo nem inesperado. As autoridades do Dubai encarceraram e expulsaram um casal britânico que apanharam a “praticar sexo numa praia pública” (embora os acusados neguem tal acusação) e sentenciaram uma cidadã britânica, mãe de duas crianças, a prisão por “adultério”. Campanhas ocasionais de moralidade levaram a que suspeitos de homossexualidade e travestis fossem incomodados e reprimiram o florescente tráfego de prostituição que constantemente entrava e saía do Emirato.


A praia Jumeira, nos arredores do Dubai, situada no fundo longínquo da foto. As áreas verdes são os jardins dos hoteis, todos de 5 estrelas e pertencentes ás mais famosas cadeias de hoteis do mundo. O primeiro hotel, construído sobre uma pequena ilha artificial, é o famoso Burj Al Arab, único hotel de 6 estrelas do mundo e o mais caro do mundo. Todos estes hoteis têm à frente um abrigo para iates, dos quais se vêem alguns.
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As regras propostas obrigam a que o(a)s bailarino(a)s sejam confinado(a)s apenas a espaços limitados onde podem permanecer e actuar nessa qualidade, os bebedores de bebidas alcoólicas podem apenas frequentar bares específicos, os fatos de banho apenas podem ser usados nas praias e os pares que caminham nas ruas de mãos dadas sejam limitados apenas a casais heterossexuais – obviamente – “efectivamente casados” – o que obrigará os casais a saírem à rua com as certidões de casamento, não vá acontecer alguma surpresa. Não obstante o código agora proposto, e que certamente será aprovado, o Dubai continuará a ser surpreendentemente liberal comparado com os seus vizinhos. Por exemplo, o livro mais vendido do emirato escrito em arábico é um manual de educação sexual escrito por um conselheiro de família, árabe, que trabalha no tribunal do Dubai. Como contraste, a polícia religiosa da capital do Reino da Arábia Saudita, Riade, patrulhou a feira anual do livro durante o mês que esteve patente ao público para evitar qualquer aproximação entre pessoas de sexos opostos durante o certame. Três escritores sauditas queixaram-se às autoridades de terem sido detidos para interrogatório por terem tentado que um livro de ficção fosse assinado pela autora saudita.
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Outro exemplo: Um acontecimento muito discutido foi a decisão do octogenário rei da Arábia, Abdullah Bin Abdul Aziz al-Saúd, de elevar uma mulher, Norah Al Fayez, à categoria de adjunta do Ministro da Educação do Reino. Mas essa mulher, licenciada em sociologia por uma universidade americana, está proibida de conduzir automóveis (todas as famílias sauditas contratam emigrantes indianos como motoristas das famílias) e pode comunicar com o seu chefe, o ministro da educação, apenas por um circuito fechado de televisão (Eu também me interessei por esta história e publiquei um artigo neste blog). Na última semana um juiz do mesmo reino condenou uma mulher viúva de 75 anos a quatro meses de cadeia e 40 chicotadas (este tipo de condenações são executadas sempre em locais públicos) por ter convidado dois jovens para entrarem na sua casa. Os jovens, um deles sobrinho do falecido marido da mulher, disse no tribunal que eles apenas tinham entrado para terem a gentileza de oferecerem à velha senhora alguns pães.
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Tudo isto se deve ao facto de os países árabes, em particular, e a maioria dos países muçulmanos, em geral, basearem as regras de convívio social e a organização das respectivas sociedades num fóssil vivo a que chamam Lei Islâmica, a Charia, lei que foi escrita há cerca de 1400 anos e que os muçulmanos gostam de imaginar que é imutável porque “foi ditada por Deus directamente ao profeta”. Assim, eles são detentores da “verdade Divina” em forma duma lei que se intromete em todas as situações da vivência diária, desde as acções mais simples até à organização política da sociedade. Como, alegadamente, esse código veio de Deus, os clérigos pensam que não precisam de um Código Civil actualizado, coisa que realmente não existe na maioria dos países muçulmanos porque “está tudo no Qurão e no Hadit”, os livros sagrados do Islão.

Edifício Burj Dubai em fase de acabamento. Será inaugurado este ano de 2009. Tem mais 300 metros do que o mais alto hoje existente, portanto será o mais alto do mundo. A decoração interior, que será muito luxuosa, será da autoria de um senhor do mundo da moda chamado Armani.
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Esta escolha cria-lhes um problema: o código está atrasado 1400 anos e não se adapta ao tempo actual. Então, se o código não se adapta ao tempo actual, deve o tempo adaptar-se ao código. Tudo o que ferir o código deve ser proibido, reprimido, considerado ilegal, mesmo criminalizado. Nem que seja necessário parar o tempo. É dentro desta lógica que só recentemente (talvez 8 anos) a Arábia Saudita tem Internet, essa “invenção satânica” cujo uso começou por ser permitido apenas nas repartições do governo e em algumas universidades. O cinema era proibido até há pouco tempo, assim como a televisão. Ainda é proibida a televisão por satélite para evitar contágio de “costumes decadentes” e “ocidentalização”.
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Daí que o europeu, desembarcado na zona árabe do mundo, se engane. A modernidade é apenas aparente, as regras de convívio e de socialização parecem de outro planeta, tão diferentes das regras em que o europeu vive. Como os factores de decisão são diferentes dos europeus, há com frequência casos de inversão de conclusões. Esta história que conto a seguir é um caso típico. Tomei conhecimento dela pelos jornais locais quando estava a viver no Bahrain, outro emirato do Golfo Pérsico hoje transformado em Reino. Anos depois, já regressado a Portugal, fiquei surpreendido ao encontrar uma referência ao caso no ensaio escrito pela francesa Martine Gozlan O Sexo de Alah (Biblioteca das Ideias, Edições Europa-América). Eis a essência desta história: Em Outubro de 2002, Turia Tiuli, uma francesa de origem marroquina (de segunda geração) a residir em Limoges, responsável pelo marketing de uma pequena empresa, durante uma deslocação profissional ao Dubai, foi violada por três árabes locais. Ao apresentar queixa, no dia seguinte, Turia Tiuli foi presa, acusada de “relação sexual adulterina”. Só foi libertada graças à pressão e à caução do consulado de França e só pôde regressar ao seu país após intensa campanha da imprensa e após longos meses de sequestro no hotel.
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Este caso é exemplar. Observe-se em primeiro lugar a inversão do ónus da prova. O crime foi praticado pela vítima de violação e o processo de averiguações foi-lhe aplicado para se demonstrar que o procedimento da “infiel” foi provocatório porque saíra do hotel vestida com uma T-shirt e calções, vestuário que não respeita as regras do “recato” e da “decência do Islão”: a T-shirt mostra as formas do corpo e das mamas, o calção coloca as pernas numa montra e ambos mostram pele em excesso. O seu comportamento “provocatório e indecente”, próprio das “mulheres perdidas”, provocou a reacção dos homens de acordo com os sinais que ela emitia: Eu sou uma prostituta e estou disponível para fornicar com qualquer homem que queira partilhar um momento comigo. As vítimas desta provocação apenas obedeceram à sua natureza de “machos”. Perante a provocação, nada mais fizeram do que satisfazer a vontade da mulher ao violá-la, o que é “natural e normal” da condição de “macho”.
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O alarido da imprensa em torno do caso serviu vários objectivos: (1) defender a tese descrita em cima e inocentar as vítimas, os Emiratis que foram surpreendidos pelo “comportamento desafiador da mulher”; (2) demonstrar que a mulher, sendo francesa, sofria dos “defeitos culturais de todas as cristãs”: “hábitos sexuais promíscuos” e “tendência para o exibicionismo sexual”; (3) realçar e reafirmar [para consumo interno] a validade das regras islâmicas a que todas as mulheres [locais], sem qualquer excepção, devem obedecer; (4) demonstrar “à navegação” que, mesmo as europeias, apesar da “arrogância” de se imaginarem superiores cultural e socialmente, não estão isentas e devem conter os seus “hábitos decadentes” quando “pisarem terras sagradas do Islão”. Merece ser realçado que todos estes objectivos são de alcance político e nada religiosos. No meio de tudo isto, a francesa esteve na cadeia várias semanas antes de ser transferida para um hotel, onde permaneceu em regime de prisão domiciliária durante meses. Foi uma contemplação especial nunca ter sido molestada. Porque quando as muçulmanas são encarceradas por idêntica acusação, são violadas constantemente pelos guardas prisionais e obrigadas a todo o tipo de actos sexuais com eles. No Bahrain aconteceu um caso desses com uma bahraini acusada de prostituição.
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Nota: As expressões entre aspas reproduzem fielmente as palavras usadas pelos media, pelos radicais e alguns clérigos (sacerdotes muçulmanos) quando discutiam, ou simplesmente informavam, sobre este caso. A terminologia, em qualquer caso, corresponde ao padrão normal para casos da mesma índole. A frase em itálico, mencionada por alguns jornais locais, foi citada de memória.

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei desse texto, pois eu estava pensnado em conhecer Dubai em minhas férias, mas agora, vejo que é melhor as praias brasileiras, a Grécia, a França, Monaco...
Não quero correr o risoc de ser violada brutalmente por animais.