Podemos afirmar, sem grande risco de erro, que a mulher «emancipada» é, depois do polícia, do padre e do estudante, o ser mais universalmente adulado. Se as razões pelas quais ela é adulada são sempre más razões, que relevam dos critérios dominantes da feminilidade aos quais ela se identifica completamente (a sedução, o mau gosto, a simulação, os requebros, as efusões, a sensualidade e os mistérios femininos que não constituem mistérios para ninguém), as razões pelas quais ela é desprezível e efectivamente desprezada do ponto de vista da crítica revolucionária, são recalcadas e dissimuladas. Os que mantém a falsa contestação sabem porém reconhecê-las, tais razões, e nelas se reconhecer. Eles juntam o desprezo à adulação numa falsa admiração condescendente. É deste modo que a Intelligentsia eunuca de esquerda (do ISCTE ao movimento pró-escolha passando pelo pasquim Ideias à Esquerda) se surpreende perante a generalização da participação das mulheres na gestão deste mundo e que as organizações efectivamente em declínio (sindicatos, partido dito comunista, nova esquerda) entre si disputam, com cobiça, o privilégio de contribuir para a sua emancipação, tentando aliciá-las. Não mostraremos aqui as razões de tal interesse pelas mulheres «emancipadas», mas como estas participam positivamente da realidade dominante do capitalismo super desenvolvido.
Todas as análises levadas a cabo sobre o movimento das mulheres negligenciaram, até hoje, o essencial, tanto mais que foram as feministas que as realizaram. Nunca, com efeito, tais análises ultrapassaram o ponto de vista das especializações universitárias (economia, sociologia, psicologia, ginecologia), mantendo-se, por conseguinte, fundamentalmente erróneas. Todas elas cometem aquilo a que já Fourier chamava uma leviandade metódica, «pois que se referem regularmente às questões primordiais» ignorando o ponto de vista total da sociedade moderna. O feiticismo dos factos dissimula a categoria essencial, e os detalhes fazem esquecer a totalidade. Diz-se de tudo a propósito desta sociedade, mesmo que ela era patriarcal [1]. Nunca se repetirá suficientemente aquilo que efectivamente ela é: mercantil e espectacular.
A espectacularização da reificação no capitalismo moderno impõe a cada indivíduo um papel na passividade generalizada. A mulher não escapa a esta lei. A mulher «emancipada» a isso se submete de bom grado. Enquanto mulher «emancipada» reivindicando uma identidade (biológica, psicológica, fantasmática, etc.) e a este título um estatuto (o direito à diferença, por exemplo biológica, psicológica, fantasmática e social), ela desempenha um papel aparentemente provisório [2] que a prepara para o papel definitivo que já vai assumindo enquanto elemento positivo e conservador no funcionamento do sistema mercantil. Este seu papel não é outra coisa senão uma integração....
Mas as razões em que se fundamenta o nosso desprezo pela mulher «emancipada» são de uma ordem bem diversa. Tais razões não dizem respeito apenas à sua miséria real; referem-se também à sua complacência perante todas as misérias, à sua propensão doentia a consumir beatamente, alienação, com a esperança, perante a falta de interesse geral, de interessar a sua privação particular.
Numa época em que uma parte cada vez maior dos indivíduos se vai libertando cada vez mais de preconceitos morais e de toda a autoridade para se entregar a relações abertas, e, ao contrário das operárias e das empregadas que passam por ser das mais alienadas, apesar das greves onde elas se mostram tantas vezes excelentes, a mulher «emancipada», escrava ressentida, crê-se tão mais livre quanto as cadeias da celebridade a amarram como categoria publicitária na qual ela se deixa ficar. Toma-se por um ser
social do mais autónomo que há e no entanto releva directa e conjuntamente dos dois aspectos principais da alienação moderna: o espectáculo e a mercadoria. Reivindica a inserção na vida social e económica, quer dizer, a sua adaptação às necessidades do capitalismo moderno, que reclama, entre outras coisas, a produção massiva de pensadores incultos e incapazes de pensar. A mulher «emancipada» está satisfeita por ser mulher e, nomeadamente, de ser uma mulher «realizada», desde que obtenha um posto de especialista qualquer, na organização institucional da ignorância (universidade, os média,...), na gestão da decomposição cultural ou mesmo na gestão para-policial da miséria social. Pode ser professora, ensaísta feminina, romancista, universitária, quadro superior, secretária de estado, puta. Ou então, pode ser, puta, actriz porno ou não, ginecologista, sexologista, venéreologista, veterinária, ecologista, psicanalista e outras lixeiras para fantasmas.
No preciso momento em que a «crise da comunicação» é o objecto de um diálogo de surdos entre diferentes especialistas, estas estúpidas conas, começam, setenta anos depois de W. Reich, a ter os comportamentos erótico-amorosos mais conformes ao que se pode esperar do mito da dita libertação genital, segundo as exigências da sociedade moderna, que regula a troca rápida de parceiros sexuais na passagem da ilusão do amor total à mais rasteira indiferença [3]. A dita libertação dos costumes aumenta esta necessidade da eventualidade da próxima satisfação. Mas é a insatisfação que é necessária ao renovamento contínuo das formas mercantis e das atracções sexuais, e a sua repetição acelerada alimenta, de cada vez, a promessa de uma melhor qualidade de consumo humano. A partir do momento que a mercadoria toma uma forma humana, as relações humanas tomam uma forma mercantil. E tal como para as outras mercadorias, a sedução é pública mas o seu consumo é privado. É por essa razão que a sexualidade tem o lugar que tem na publicidade moderna, como modelo de relações humanas e como meio de promover o consumo de outras mercadorias, sob um aspecto que não é senão público.
É precisamente na relação estruturadora do casal dito liberado, que a mulher «emancipada» deposita a sua ambição e renova a sua esperança, para pôr em prática o seu «savoir-vivre» que aprendeu nas telenovelas, no cinema, nas revistas femininas, ou, no caso das mais modernas, nos Tratados que foram subversivos há uns anos atrás. Mas aí como noutros lados, todas as suas tentativas acabam em águas de bacalhau.
Após ter ratificado todas as separações, a mulher emancipada vai de seguida gemer para diversos círculos, «religiosos», centros de expressão corporal, ou ainda em alguns gangs feministas, nos quais vai falar abundantemente de contracepção, de aborto, engates, pseudo-violações e a igualdade dos sexos. No lar, partilhará as cargas de trabalhos com o cornudo do momento. É tão inepta e infeliz, que chega ao ponto de espontaneamente ir confiar-se aos psiquiatras, psicólogos e terapeutas de grupo, enquanto que para as outras é preciso a camisa se forças para as obrigar a comparecer perante os controlos para-policial criados pela vanguarda da opressão moderna.
É ela, a mulher «emancipada», a que tem mais ilusões sobre o trabalho assalariado, ao contrário da operária, para quem o trabalho é sempre um constrangimento. Já que alcançou uma situação «confortável», orgulha-se de trabalhar para ser «independente», pior ainda, para se «realizar».
A miséria real da mulher «emancipada» completa-se na mercadoria cultural. Numa época em que a arte morreu, ela continua a ser o principal fiel dos teatros e dos cineclubes, e o mais ávido consumidor do seu cadáver congelado, agora difundido, embrulhado em celofane, nos supermercados da abundância. Ela confirma as análises mais banais da sociologia americana do marketing: consumo ostentatório,
estabelecimento de uma diferenciação publicitária entre produtos idênticos na sua nulidade (Kate Millet ou Julia Kristeva, Simone de Beauvoir ou Benoîte Croup).
Incapaz de paixões reais, é com polémicas sem paixão que ela se delicia: com essas discussões entre as vedetas da Pós-Inteligência sobre falsos problemas cuja função é falsificar os verdadeiros: o cientista bem-aventurado Sousa Santos, a bolinha semiótica Prado Coelho, João Carlos Florete o comedor de goulags, o apreciador de retretes israelitas Pedro Paixão, Miguel Esteves Merdoso, Baudrillard o simulacro de inteligência, Deleuze o corpo sem órgãos, Foucault, Pop, Rock, Electro-Trampa e blábláblá.
Na sua aplicação, a mulherzita «emancipada», julga-se de vanguarda porque viu o último filme de Lars von Triers, comprou o último livro sobre Pós-Colonialismo. Esta ignorante toma por novidades revolucionárias, garantidas por marca, os mais pálidos sucedâneos de importantes descobertas, falsificadas tendo em vista o mercado, com o fim de fazer recuar o seu desaparecimento próximo.
Além das revistas femininas onde elas renovam sem cessar a sua panóplia e as suas diversas receitas de sedução, as suas leituras preferidas continuam a ser a imprensa especializada que orquestra o consumo delirante de gadgets culturais; docilmente ela aceita os seus ditames publicitários e faz deles a referência padrão para os seus gostos. Deleita-se constantemente com o Expresso ou com o Independente, ou então acredita que o Público, cujo estilo é menos sensacionalista que o Tal e Qual, é verdadeiramente um jornal sério e até extremista. Por falso pudor ou por falso desinteresse, prefere os ensaios de psicanálise às revistas pornográficas, devido ao discurso «científico» daqueles, e que lhe serve de álibi.
Tudo se passa de forma diferente com as mulheres mais pobres. Também estas podem aplaudir a imagem dominante da mulher e admirar aquelas que triunfam na vida, porque esta imagem representa a possibilidade virtual de sair da sua condição, embora seja isso mesmo o que a mantém lá. Pode mesmo esperar encontrar um dia um homem rico, versão burguesa degradada do príncipe encantado de outrora, que venha tirá-la do seu estado. Prefere sempre um mundo etéreo onde possa triunfar mas tudo lhe mostra o seu falhanço. No entanto, mais tarde ou mais cedo, as suas ilusões acabam, pois tem que olhar a sua condição com um olhar desabusado, tudo a leva a compreender que a parte de espectáculo e mercadorias produzida para ela não serve senão para a afastar da sua vida.
A sua extrema alienação não pode ser contestada senão pela contestação da sociedade na sua totalidade. De maneira alguma esta contestação pode ser feita no terreno do feminismo. Por contar apenas com ela mesma e compreender que terá apenas o que merecer, ela deve combater a ideologia feminista, que à semelhança de todas as ideologias, não serve senão para retardar a consciência do que realmente está em jogo. A ideologia feminista só pode opor-se ao movimento real da subversão: a feminista como tal, arroga-se um pseudo-valor que a impede de tomar consciência da sua despossessão real, e por este facto, fica posicionada no cúmulo da falsa consciência.
Em tudo isto, não se trata tanto do problema do estatuto das mulheres na sociedade como do problema do estatuto da sociedade entre outros, posto entre as mulheres.
Não sendo ninguém, nas condições actuais, reconhecido como indivíduo, a mulher não pode então reclamar um direito particular para elas, fora da emancipação geral da sociedade. O futuro do homem não será a feminista e os amanhãs não cantarão necessariamente como as meninas da vida.
O capitalismo, efectivamente, criou as condições gerais para o fim da mercadoria, e inseparavelmente, da abolição do salariado. Os meios existem, tudo depende do que cada um souber fazer com eles.
Notas:
[1] A reivindicação da igualdade formal dos sexos assenta no postulado que os homens no seu conjunto possuem o poder, sendo este postulado derivado da constatação que aqueles que detém o poder são homens. As feministas não querem ver que aqueles que encarnam o poder são simplesmente aqueles que estão na boca de cena. De facto, pode dizer-se que o poder até esta última fase do capitalismo pertenceu aos homens, visivelmente, e às mulheres da sua classe de forma oculta.
[2] Não há «minorias» oprimidas, não mais que papéis vantajosos ou privilegiados a desempenhar. A minoria é aquela noção que resulta dos destroços do reformismo, que dá ao militante o seu principal cavalo de batalha. A minoria deve, por definição, reivindicar, quer dizer, interpelar o poder estabelecido a fim de negociar as condições mais favoráveis da sua sobrevivência num mundo que se deixa por criticar.
[3] A predominância do mito da grande noite sexual na parceria amorosa (co-pinagem), faz da ideia de encaixe, a única instância eficaz, mas a títulos diferentes: o homem manipula a relação para obter prazer, enquanto que a mulher manipula o seu poder de atracção obter relações. A maior parte do tempo, nem há uma coisa nem outra. Quando fodem, é o velho mundo que se vem.
quarta-feira, 22 de abril de 2009
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