sexta-feira, 25 de abril de 2008

O PAPAGAIO DE PAPEL

Camponeses, marçanos ou estudantes mal ajustados ao uniforme de campanha, inconformados com a espartana rotina que levavam, emprestavam cada vez mais imaginação à vida. Era a idade de viver o sonho, experimentando realidades de modo a marcá-las de forma singular. Mesmo ali, naquele lugar para onde os tinham atirado sem consulta, continuavam tão inconformistas quanto os jovens o são. Empenhavam-se em personalizar as condições de sobrevivência, com tanto ou mais afinco e sucesso do que na luta contra o inimigo que os espreitava na floresta.

Nas tendas de lona não existia qualquer mobiliário e só os graduados dormiam em camas de ferro. Aos soldados estavam distribuídos colchões pneumáticos e ninguém tinha sequer uma cadeira onde repousar com um mínimo de conforto nos intervalos das operações.

Para guardarem as fardas e o calçado militar, dispunham de dois sacos de transporte de bagagem, servindo um de inseparável mochila onde se misturavam as caixas de munições de reserva com uma manta, um poncho impermeável e cinco rações de combate para matar a fome no mato. O outro substituía, dentro do possível, cómoda e guarda-fato.

Isto a princípio, que o espírito de improvisação dos soldados, a necessidade de preservarem a sua individualidade, diferenciando-se dos outros, depressa começou a transformar aduelas de barris de vinho - que constituíam tara perdida - em mesas, bancos, estantes e armários, conforme a necessidade e o gosto de cada um. Passados seis meses até já havia quem dispusesse de cadeira de baloiço, estilo império arqueado, como ironicamente foi catalogado tal tipo de mobiliário artesanal.

Dos fundos privativos, a companhia limitava-se a fornecer pregos e dobradiças. Os mais requintados pagavam as fechaduras que o sargento Castanheira lhes trazia do armazém de ferragens quando, no fim do mês, ia à cidade com o capitão buscar artigos de expediente e dinheiro para pagar o soldo. A lista das encomendas era sempre enorme mas pouco variada.

Daí André estranhar que, dessa vez, o sargento lhe perguntasse se sabia onde comprar papel de seda.

- Ó nosso primeiro, para que raio quer você isso? Vai oferecer prendas a alguém?

- Sei lá, meu capitão, isso gostava eu de saber. Foi o pessoal que pediu cinquenta folhas e só disseram que era surpresa.

- Bom, se não houver na intendência, procure na papelaria civil - disse André resmungando: - Ora esta?! Papel de seda na mata quer dizer que cacimbaram completamente.

No regresso à companhia, o Castanheira lá trouxe um volumoso embrulho e tentou deslindar o mistério:

- Olhem que o nosso capitão não achou piada à encomenda... Mas, afinal, qual é a vossa ideia?

- Não se meta nisso, meu primeiro, que amanhã logo vêem - respondeu o Zig, com os olhos reluzentes. - Diga só quanto custou que a gente paga já.

E assim foi, embora o intrigado sargento ainda insistisse em informarem o comandante da companhia “do que andam para aí a arquitectar, não vá ser asneira e dar para o torto. Depois queixem-se e digam que não vos avisei! Tenham cuidado que ele também já anda farto desta merda e não está para aturar números de circo.”

Nessa noite houve quem não se deitasse e, ao nascer do dia, os mais dorminhocos acordaram com gritos de “vamos lançá-lo, vamos lançá-lo!” Estremunhados, alguns graduados esfregavam os olhos sem acreditarem no que viam, e miravam de relance o capitão atónito, à espera de uma reacção que tardava.

Sobre a companhia pairava no ar um enorme papagaio de papel, ondulando em cabriolas caprichosas, como se hesitasse em ganhar altura.

- Cuidado! Não o deixem cair que se rasga - gritou André, correndo finalmente em direcção aos que, à frente, puxavam pelo cordel contra o vento.

Após várias correrias e alguns sustos, a enorme joeira colorida elevou-se devagarinho, soprada pela brisa ligeira da manhã. Era lindo de se ver. E os homens, para melhor a olharem, sentaram-se no chão com os braços esticados para trás, a servir de encosto, pasmados.

Dir-se-ia que até as suas vidas ancoravam no tempo, com o pensamento suspenso na guita que sustinha o papagaio de papel. À deriva, vasculharam o casco submerso das recordações esquecidas que, de muito fundo, emergiam.

Pensariam na infância feliz que a dureza da guerra tão depressa apagara? Alguns, com certeza. Mas quase todos se limitavam a gozar o desconcertante espectáculo que ofereciam a si próprios, comungando o prazer da representação colectiva em que eram espectadores intervenientes, como se de uma liturgia se tratasse. Deleitados, não pensavam em nada. A não ser mergulhar naquele jogo infantil, em liberdade. Para sempre.

O dia escorreu por dentro deles, fora daquela guerra que não queriam, numa viagem fantástica e ingenuamente encantada.

Ao entardecer, o papagaio ainda pairava sobre a companhia, dando a sensação de protecção absoluta que só o útero materno transmite. Até que sobreveio o crepúsculo, a hora em que a natureza perde transparência e se prepara para outro ciclo.

O encanto quebrou-se com a primeira detonação, logo seguida de outras. Ouviram-se disparos sucessivos, como num arraial de fogo de artifício, com as balas tracejantes aferindo o tiro ao alvo em que, cumprida a sua missão, a joeira se transformou.

Esfrangalhada, rasgada pelo impacte dos projécteis, desfez-se em tiras de papel sopradas pelo vento, descendo suavemente sobre a mata. Talvez fosse uma tentativa inútil de apaziguar os atiradores zangados, desiludidos. É que os brinquedos das crianças têm destas coisas: uma maneira própria de serem objectos transfigurados em sujeito do jogo iniciático da vida. Afinal o papagaio abatido não passava de papel rasgado. Mas seria somente isso? Talvez não...

Nessa noite quase não trocaram palavra, tardando em adormecer nos seus leitos de solidão, aconchegando a criança que neles redescobriram, sem encontrarem explicação para a sanha destruidora que a avassalara. Demoraram a levantar-se, tristonhos.

Álvaro Fernandes in "Kianda o rio da sede", Dinossauro, Lisboa 1996

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