quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A POESIA DE ANTÓNIO GEDEÃO

ANTÓNIO GEDEÃO (1906 – 1997)

Rómulo Vasco da Gama de Carvalho nasceu a 24 de Novembro de 1906 na freguesia da Sé, em Lisboa. Ai cresceu num ambiente familiar tranquilo, marcado profundamente pela figura materna, que muito o influenciou ao longo da sua vida.
Sua mãe, apesar de ter somente a instrução primária, tinha como grande paixão a literatura. Esse sentimento transmitiu-o ao filho Rómulo, assim baptizado em honra do protagonista de um drama lido num folhetim de jornal. Incentivado por ela toma contacto com os mestres: Camões, Eça, Camilo e Cesário Verde. Ao ler a obra “As Mil e Uma Noites” passou a considerá-la uma das suas bíblias.
Aos cinco anos de idade começou a escrever os primeiros poemas, nunca mais deixando de o fazer. Ao entrar para o Liceu Gil Vicente interessa-se vivamente pelas ciências o que se vai intensificando ao longo dos anos. A literatura continua a acompanhá-lo mas, dado que era extremamente pragmático, procura uma certa estabilidade uma vez que continua a sentir-se atraído por essa área. Forma-se em Ciências Físico-Químicas na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Em 1932, um ano depois da sua licenciatura, forma-se em Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras do Porto. Comunicar e ensinar foram as suas paixões, usando a palavra mas também a escrita. Dedicou-se à ciência e à sua divulgação, deixando imensos trabalhos publicados e outros ainda por publicar.
Rómulo de Carvalho foi professor, pedagogo e autor de manuais escolares, historiador da ciência e da educação, divulgador científico e poeta. Desenvolveu uma actividade de divulgação científica que marcou gerações em Portugal. Os seus livros de divulgação em Ciência e Tecnologia e os seus artigos em jornais revelavam a sua preocupação com o despertar do interesse dos portugueses pelo conhecimento científico. Na “Gazeta de Física” publicou, até 1974, 22 artigos de divulgação científica, actualização didáctica e orientação pedagógica.
Mas a escrita, a poesia continuam a marcar a sua vida. Foi um poeta lúcido, com um sentido de humor nato e de uma sensibilidade abrangente a todos os níveis, mas dizia que não sentia, mesmo escrevendo sempre, que a sua poesia fosse de qualidade e tivesse utilidade...
Só em 1956, após ter participado num concurso de poesia de que tomou conhecimento no jornal, publica, aos 50 anos, o primeiro livro de poemas “Movimento Perpétuo”. Esse livro surge como tendo sido escrito por outro, António Gedeão, e o professor de física e química, Rómulo de Carvalho, permanece no anonimato.
Sendo este livro muito bem recebido pelos críticos António Gedeão continua a publicar poesia, aventurando-se, anos mais tarde, no teatro, no ensaio e na ficção.
A obra de Gedeão é um mistério para os críticos e as interrogações surgem: Porque aparece para a luz este poeta, já com 50 anos, não se enquadrando em qualquer movimento literário? Gedeão escreve poesia real que nos agrada, preocupa-se com os problemas comuns, pela época em que vive. Nos seus poemas exprime-se numa comunhão perfeita entre a ciência e a poesia, a vida e o sonho, a lucidez e a esperança. É genuíno, simples, realista, sensível. A sua originalidade talvez tenha sido devida a ter amado, com paixão, dois interesses distintos que ele soube complementar. Gedeão comunica mostrando uma geração reprimida sem futuro adivinhado. A sua poesia é um caminho de esperança para a liberdade possível. Abre-se ao sonho ao escrever "Pedra Filosofal", musicada por Manuel Freire, que se torna num hino à liberdade. Em 1972, José Nisa compõe doze músicas com base em poemas de Gedeão e edita-se o álbum "Fala do Homem Nascido".
O professor Rómulo de Carvalho em 1974, desmotivado pela falta de autoridade que depois do 25 de Abril tomou conta do ensino em Portugal, decide reformar-se. Não se conforma com a desorganização do país. É convidado para leccionar na Universidade mas declina o convite.
Posteriormente dedica-se por inteiro à investigação publicando livros, tanto de divulgação científica, como de história da ciência. Mas Gedeão também continua a sonhar... e o homem, o ser humano que existe nele aproxima-o do desejo de morrer e em 1984 publica “Poemas Póstumos”.

“...Dorme, criança, dorme.
Não deixes ficar mal os que acreditam
no mito da inocência.

Dorme, e espera que os homens se aniquilem
enquanto dormes.
Reduz-te a imaginar como serão as flores,
os insectos, as pedras, as estrelas,
tudo quanto é belo e se reflecte
nos olhos das crianças.
Imagina o luar que cresce e aquece
e faz da tua carne flor de loiça,
orquídea branca que o calor não cresta.
Imagina, imagina.
Mas, sobretudo, dorme.”

Em 1990, com 83 anos, Rómulo de Carvalho assume a direcção do Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa, função que desempenhará até ao fim da sua vida.
Ao completar 90 anos de idade, é homenageado a nível nacional. O professor, investigador, pedagogo e historiador da ciência, bem como o poeta, é reconhecido publicamente por personalidades da política, da ciência, das letras e da música.
A 19 de Fevereiro de 1997 parte para sempre Rómulo de Carvalho. Gedeão já tinha morrido alguns anos antes, quando da publicação de “Poemas Póstumos” e “Novos Poemas Póstumos”.

“...Já não me cansa o que lá vai no tempo.
Já não me cansa o que há-de vir depois.

A sombra existe sempre
mas quando o Sol me banha do seu alto,
ó alegria das alegrias!
Eu canto, eu rio, eu sonho, eu estendo os braços,
eu com os dedos afago.”

Homem de muito saber, discreto mas que em vida tanto fez por todos que tiveram o privilégio de o conhecer, de o ler, de aprender com ele. Para as futuras gerações será um marco de modernidade. Deixou uma saudade imensa pela sua integridade, pela sua subtileza, pela sua filosofia de vida.
Aida Nuno
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
E um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
Para ver quem é,
Enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
E correr pelos interstícios das pedras, pressuroso e vivo como vermelhas minhocas
Despertas;

Enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
Órfãos de pais e mães,
Andarem acossados pelas ruas
Como matilhas de cães;

Enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
Com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
Num silêncio de espantoRasgado pelo grito da sereia estridente;

Enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
Cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
Amassando na mesma lama de extermínio
Os ossos dos homens e as traves das suas casas;

Enquanto tudo isso acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
Enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
O poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA


António Gedeão, Linhas de Força

DECLARAÇÃO DE AMOR

Excita-me a tua presença, ó Arvore – ó Arvores todas!
Desejo-te (desejo-vos) como se fosses Carne, e eu Desejo.
Como se eu fosse o vento que preside às tuas bodas,
e te cicia em redor, e te fecunda num aliciante beijo.

Ponho os olhos em ti e entretenho-me a pensar que sou mãos,
todo mãos que te envolvem o tronco e te sacodem convulsivamente.
Requebras-te com volúpia, e os teus emaranhados cabelos louçãos
fustigam o ar como látegos com toda a força que este amor me consente.

Ó Arvore minha débil! Ó prazer dos meus olhos extáticos!
Ó filtro da luz do Sol! Ó refresco dos sedentos!
Destila nos meus lábios as gotas dos teus ésteres aromáticos,
unge a minha epiderme com teus macios unguentos.

Desnuda-me a tua intimidade, ó Arvore. Diz-me a que segredos recorrer

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