quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

O Menino



O menino dorme, cómodo e confortável, deitadinho à margem dos poéticos discursos natalícios, das mesuras decrépitas, dos votos fingidos e das forçadas reverências. Longe dos nervosos afazeres da época, o menino ainda pequenino nada entende de desgostos e vaidades, de novas ou antigas hostilidades e muito menos de dedos que ficam para sempre marcados em duas faces. Nunca provou do sangue violento que escorre dos olhos tristes que tentam ver respostas aos porquês impossíveis de responder. O menino ainda não sabe o que quer dizer esta vida são dois dias e por isso não devemos alimentar desgostos e desavenças. Pois o menino, à medida que for medrando, vai ver que a vida não passa mesmo de dois dias e que é por isso que deve ser vivida com nobreza e dignidade. A dignidade, porém, é um conceito de difícil explicação, uma forma concreta de estar na vida, mas cujos contornos não são possíveis de identificar senão ao nível dos sentidos. No entanto, aqui para o menino podemos falar dela como uma mercê que vem impregnada nas saliências e concavidades de algumas essências.
Conversa enredada esta! Que descuido! O menino ali deitado intacto, num berço de madeira macia, já sabe tudo o que vale a pena. Na verdade, o menino começa agora a esquecer-se e quando este violino expirar já ele terá desaprendido o valor do legado contido na massa de que foi feito. No momento dos primeiros passos vai tropeçar nas pedras da calçada, vai levantar-se do chão, vai cair nas poças das águas doentes, vai lavar feridas nas nascentes, vai sujar o bibe na lama do mundo, vai sentar-se à mesa de jogo, vai baralhar as cartas e voltar a dar.
Agora vou fazer replay e embalar o menino mais um pouco antes dele sair do berço. Deixo a porta do coração escancarada pois sei que vai precisar de ajuda nesse acto violento a que chamamos crescer.



Eliyahu Hanavi (Elijah the Prophet) - Jewish Lullabies

No momento da minha estreia aqui, deixo ainda, o meu agradecimento pelo convite que me foi enviado pelo Zigoto. Espero poder merecer tamanha gentileza e confiança. Muito obrigada.
Bom Natal e Feliz Ano Novo para todos.

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Imagem: William Bouguereau, La Berceuse

2 comentários:

zigoto disse...

Em jeito de conto natalício, este texto é o melhor projecto e síntese(realista) do que podemos e devemos contribuir para que o futuro de toda a Humanidade seja melhor do que a tempestade prenuncia.
Como já tinha previsto - ao anunciar o contributo de Graça Brites e Victor Camiler - temos mais dois novos e valiosos autores no nosso Cacimbo.
A estreia da Graça Brites é a prenda que me permito oferecer a todos os nossos leitores e restantes autores nesta Quadra de Esperança.

Anónimo disse...

Belo texto! Excelente análise e muito oportuna nestes tempos conturbados que atravessamos.
Bem vinda esta nova contribuição ao Cacimbo de uma jovem cheia de talento que lhe veio dar uma lufada de poesia muito lúcida e consciente.