terça-feira, 28 de outubro de 2008

O ÚLTIMO SOBREVIVENTE

Edward Briggs fotografado em 1940 e numa foto recente em 2005.
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Edward Albert (“Ted”) Briggs, o último sobrevivente do afundamento do cruzador Hood, faleceu em 4 de Outubro com 85 anos.
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Morrer numa cama de hospital não era o fim que Ted Briggs esperava. Ele pensou que tinha chegado ao fim quando, aos 16 anos de idade, numa patrulha de rotina no meio do Atlântico Norte a bordo do cruzador Hood, em 1939, ele olhou para cima e viu um objecto negro “grande como um autocarro de Londres” a sair das nuvens baixas que cobriam o oceano e cair no tombadilho do navio com grande estrondo e milhares de estilhaços. Ou, alguns meses mais tarde, quando uma série de bombas largadas de um avião italiano o derrubou da escada do convés da bandeira, fazendo um corte no nariz que sangrou em torrente. Ou quando, avançando de vagar e com muito esforço ao longo da verga superior da torre principal para reparar uma adriça (cabo para amarrar as bandeiras, uma vez que ele era operador de sinais) ele viu uma enorme coluna de vapor sobreaquecido sair das válvulas de segurança localizadas muito em baixo na casa das máquinas, e ele não foi cozido vivo porque conseguiu escapar a tempo.
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A vida de um jovem marujo da marinha de guerra num cruzador carregado de artilharia pesada não era nenhuma brincadeira. Desde a entrada no turno de serviço diário às 05.25 horas até à hora de recolher às 20.45 horas – quando finalmente baloiçava na cama de rede coberto com um pesado cobertor de lã, a sua boca ainda com o sabor do cacau granulado – era constituída por constante limpezas de convés de cor cinzenta com esfregona e vassoura, entremeadas com instruções e berbequim. Isto em tempo de paz. Mas Briggs conheceu apenas dois meses de tranquilidade até lhe ser ordenado que hasteasse a bandeira “E” e “entrada em vigor 46”: “Começar hostilidades com Alemanha”.
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Ele não tinha entrado na Marinha para lutar. Ele tinha entrado porque, num dia de Verão de 1935, ele vira da praia de Redcar no Norte do Yorkshire um longo, esbelto, enorme navio de guerra ancorado longe da costa. Soube depois que era o cruzador Hood que estava de visita a Hartlepool. Briggs, um jovem impulsivo, tinha dificuldade em referir a sua “beleza” e a sua “graça”, mas era o que ele sentia. Ele apaixonara-se por aquele navio. Ele tentou ser admitido na Marinha no dia seguinte. Um marinheiro que o atendeu disse-lhe, uma vez que ele tinha apenas 12 anos, que viesse mais tarde quando tivesse a idade conveniente. O dia em que ele entrou ao serviço no Hood, com 16 anos na base de Portsmouth, foi quando sentiu pela primeira vez aquela estranha mistura de náusea e de selvagem excitação que o assaltava sempre que ocupava a sua posição de combate e os grandes canhões abriam fogo.

O cruzador Hood em 1939
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Nos seus artigos escritos, cartas para a família e amigos, ou conversas sobre o Hood, Briggs lembra a sua grande felicidade a bordo. As duras patrulhas perto do Ártico para interceptar navios alemães traziam-lhe mares tempestuosos, roupa encharcada e salpicos gelados, mas “o poderoso Hood” era o objecto das suas maiores atenções. Orgulhava-se dele e das muitas tarefas que desempenhava para ele: era mensageiro dos oficiais das patentes mais altas, era operador de sinais, hasteava as bandeiras de acordo com o necessário e fixava-as às adriças das vergas mais altas.
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O Hood era um velho navio, enferrujado e lento, construído em 1916 para actuar na I Grande Guerra e nunca remodelado ou reblindado. Dado o seu tamanho e peso de cerca de 41.000 toneladas, era-lhe indiferente navegar nas águas revoltas do Atlântico Norte ou nas águas calmas do Mediterrâneo. Foi o navio Almirante do ataque que destruiu a esquadra Francesa de Vichy em Mers-el-Kebir em 1940 (uma acção que Briggs considerou “revoltante” embora, como lhe fora ordenado, ele, vacilante, amarrasse a bandeira branca e vermelha que significava “Abrir fogo”). Mas o casco do navio rangia com ondulação forte e a água lambia constantemente o convés de popa por ter pouca altura em relação à linha de água. “Briggo” como era conhecido pela tripulação, aprendeu depressa a subtileza de despejar os penicos sem ser levado pelas ondas. Mas, jovem como era, ele preocupava-se com o navio. Bem acima da sua cabeça, oficiais com “ovos mexidos“ (calão da altura para medalhas ou condecorações) no peito não se preocupavam com a espessura da blindagem do convés superior.
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Em 23 de Maio de 1941 o Hood hasteou a sua insígnia de batalha. A fama do navio, orgulho da marinha de guerra britânica, tinha ensombrado o mais aparelhado Bismark, uma “versão aperfeiçoada destas máquinas de guerra” como pensava Briggs, pelo menos durante os últimos 30 dias de patrulha no Mar do Norte. Agora os dois émulos aproximavam-se entre si, para decidir qual dos dois reinaria sobre o Atlântico Norte. Quando o Bismark disparou a sua quinta salva com os canhões de 380 mm, Briggs estava na plataforma “do navegador”, quase à altura da ponte de comando. O impacto dos obuses sobre o convés de proa provocou uma cortina vermelha de chamas que se elevou muito acima de Briggs à frente dos seus olhos incrédulos. Em poucos minutos o navio adornava para bombordo a 40º de inclinação e tornou-se evidente que o Hood “não recuperaria”.

O couraçado alemão Bismark em 1941.
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Em poucos segundos o convés cobriu-se de água. Com uma capa impermeável e um blusão de agasalho por cima do colete salva-vidas, Briggs lutou para se libertar de objectos inúteis. Arrancou a máscara de gás e o seu capacete de batalha. Quando a água o submergiu, ele rapidamente se apercebeu que tinha de manter-se quente ou morreria de hipotermia. Mas, imediatamente, ele foi impulsionado para a superfície como “uma rolha de champanhe”. O ar que se libertava do navio por baixo dele envolveu-o e arrastou-o para cima. Quando conseguiu abrir os olhos, viu a proa do Hood em posição vertical acima da água. Esta imagem ficou na sua memória e era recorrente nos seus sonhos.
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Cerca de 1.415 homens morreram quando o Hood os arrastou para o fundo do Atlântico. Este ficou gravado na História como o mais terrível desastre das forças armadas britânicas durante a Segunda Grande Guerra. Apenas três homens sobreviveram. Briggs permaneceu durante três horas agarrado a uma balsa salva-vidas a cantar “Roll out the Barrel” (Rola a Barrica) para se manter acordado, até ser salvo pelo cruzador ligeiro Electra. De regresso a terra, ele viu-se transformado num herói, coberto de chocolates e cigarros e com fartura de longos banhos quentes abrilhantados com o sabão Lifebuoy. Quando finalmente chegou a casa da sua mãe em Derby ele explodiu em lágrimas, mostrando o que realmente era: apenas “um jovem balbuciante, tremente, assustado, que regressava da guerra”.
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Ele serviu noutros navios de guerra até ao fim das hostilidades. Aposentou-se em 1973 com a patente de tenente, mas o Hood nunca se descolou da sua pele. Decorreu uma investigação depois da guerra para esclarecer as causas do afundamento do navio. Concluiu-se que um obus do Bismark tinha perfurado a blindagem do convés de proa e explodiu no paiol das munições. Briggs tinha, porém, as suas dúvidas. Ele responsabilizava as instáveis rampas de lançamento múltiplo de foguetes, um capricho de Churchill que a tripulação detestava. Também responsabilizava o almirante Holland, o comandante-em-chefe da marinha por ter levado o “nosso querido navio” à primeira linha de ataque ao Bismark.
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Em 2001, quase com 80 anos de idade, visitou o local do afundamento do Hood para lançar ao mar uma placa em memória dos seus camaradas mortos. O navio jaz a três mil metros de profundidade, desfeito e partido em dois. Mas o seu leme está parado na posição em que afundou em obediência ao último sinal hasteado por Briggs com duas bandeiras azuis de tipo 2: leme a 20 graus para bombordo para enfrentar os canhões do Bismark.
The Economist

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