E, ao décimo dia após a derrota nas "europeias", o "animal feroz" transformou-se num cachorrinho alimentado a Xanax. O eng. Sócrates surgiu na SIC a conversar docemente com uma jornalista da casa, tão doce como ele.
O exercício, que durou espantosos cinquenta minutos, pretendia ser uma demonstração de modéstia, ou a prova de que o primeiro-ministro, à semelhança da lua, possui uma face oculta, e que, à semelhança de Guterres, a face é meiga.
Na verdade, a "entrevista" constituiu uma das páginas mais embaraçosas da nossa já não excessivamente solene democracia. Não tanto para o espectador, que com risinhos e sonolência lá sobreviveu àquilo: para o eng. Sócrates, que pode não ter sobrevivido.
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Modéstia, afinal, não houve nenhuma. Salvo pormenores "formais" (a "burocracia" na avaliação dos professores, por exemplo), o eng. Sócrates reconheceu um único "erro": o parco apoio à "cultura", na presunção convicta ou simulada de que um punhado de filmes e peças por subsidiar é fonte de angústia colectiva. De resto, desfiou a propaganda do costume: reformas (?), progresso científico (?), redenção do ensino (?), crescimento económico (?), criação de emprego (?), controlo das contas públicas (toldado pela malvada "crise internacional", a maior dos últimos cem, mil ou dez mil anos, não me lembro), benefícios do investimento estatal, energias "renováveis", Magalhães, etc.
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No final, confessou-se assaz contente consigo e com a sua "mundividência". Para o futuro, conta com o "país moderno", que "quer andar para a frente" e que "não se deixa abater". Não conta, presume-se, com a chusma de pessimistas retrógrados que não apreciam as maravilhas que o Governo faz por eles.
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Embora embrulhada no tom intimista dos programas nocturnos de rádio, trata-se da lengalenga de sempre e do eng. Sócrates de sempre, um homem curiosamente obcecado com ele mesmo e curiosamente convencido da própria importância. Convém moderar as comparações com Guterres.
O assustadiço Guterres fugiu ao perceber que percebêramos o buraco em que nos meteu. O eng. Sócrates nunca abdicaria voluntariamente do poder. No máximo, abdica da imagem com que o desempenhou durante quatro anos, trocando a velha arrogância (ou "firmeza") pela dissimulação (ou "humildade").
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O pressuposto é o de que a governação se define através das aparências, ou do "estilo", e que um novo "estilo" fatalmente conduzirá os eleitores a uma nova avaliação da governação. Pelo menos é isto o que vai nas cabeças dos estrategas e conselheiros do eng. Sócrates. A propósito, quanto ganha essa gente? Seja o que for, é demasiado.
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Se o eng. Sócrates não o enxerga sozinho, era aconselhável rodear-se por quem o alertasse para o perigoso ridículo da manobra. Não foi só a inépcia do seu Governo que custou ao PS as "europeias", sobretudo contra um PSD vago nas propostas e insondável enquanto alternativa.
A derrota socialista deveu-se principalmente ao carácter "plástico" do líder, um holograma ruidoso que cansou os cidadãos e contrasta com a discrição quase patológica mas "humana" de Manuela Ferreira Leite. Supondo que alguém a viu, a plástica "entrevista" à SIC apenas terá aumentado o cansaço e o contraste.
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Dividido entre não poder ser quem é e não conseguir ser quem não é, o eng. Sócrates encontra-se num aperto. Excepto se os portugueses acreditarem de facto nas proezas da cosmética, e os abstencionistas que o primeiro-ministro procura seduzir corresponderem à definição que o dr. César dos Açores lhes aplicou: uma multidão de estúpidos.
Alberto Gonçalves
in DN
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