DOIS
Em tempos soube-se da história de um moço baixote, perneta, esfarrapado e olho à porra, que apareceu um dia numa vila do interior, vindo ninguém sabia donde e passara a viver de esmolas, como um calaceiro inútil.
A populaça berrava-lhe:
— Tu és a lazeira da nossa linda terra. És caruncho na nossa madeira.
Mas tu, ao encontrá-lo, interrogavas:
— Ouve lá, ó perneta vagabundo, quem é o teu pai?
E ele não respondia.
Ou então reparavas que os únicos amigos dele eram os cães, as carraceiras que ninhavam no pinhal, ou as árvores sob cuja sombra amolecia o calor, e perguntavas-lhe:
— Por que é que não brincas com outros rapazes, como tu?
E ele encolhia os ombros sem te responder. É que os moços atiravam-lhe pedras, por ele coxear e ter vindo de longe, de um lugar onde nada prestava e tudo era feio e poluído.
Se tentava entrar nos jogos, era expulso:
— Vereda geringonça! A tua terra vomitou-te! O que fazes aqui, bate fuga prá lixeira.
Era uma bonita vila, limpa e onde ninguém mancava. Via-lo tu então dar simplesmente meia volta e afastar-se arrastando a perna.
Um dia, alguém fez a pergunta:
— Ouve lá, ó olho à porra. Tu não tens mãe?
Mas o moço quedava-se mudo. Lançava de soslaio, no breve tempo de um relâmpago, um olhar, que logo baixava, corando de embaraço.
Houve uma noite em que os da terra quiseram expulsá-lo à paulada:
— Esta semente de coxeadura, que vá cultivar-se para longe.
Tu então, que tinhas decidido protegê-lo, sondaste:
— Ouve lá, ó enjeitado. Tens irmãos?
Então o rosto acendeu-se e dois olhos cravaram-se direitos e orgulhosos nos teus.
— Sim, tenho um irmão.
E todo afogueado, falou-te, cheio de capricho, do seu irmão.
Era mais velho e capitaneava uma traineira magnífica numa terra altaneira, dona de um Cabo de Mar e berço de grandes navegantes e barqueiros. Numa madrugada de glória, há três anos, esse irmão chegara a escarranchá-lo a ele, baixote, perneta, olho à porra, na ré do barco para um passeio ao mar. Ó como fora esplêndido sorver o salgadiço da aragem molhada.
Esse irmão mais velho havia um dia de vir visitá-lo àquela vila do interior. E então voltaria a pegar nele, baixote, perneta, esfarrapado, olho à porra, e na presença de toda a vila, a sentá-lo de novo noutro barco qualquer para um passeio lá em baixo na barragem. “Mas dessa vez” — acrescentava o rapaz — “irei na proa, mesmo no bico, bem alto. E eu é que hei-de olhar primeiro. E eu é que hei-de conduzir: a bombordo a estibordo..., cuidado com as ondas. Então, não estarei sozinho. Nós seremos dois.”
E a vila saberá: o moço, baixote, perneta, olho à porra não é apenas dele próprio e da sua feiura. Ele é de um irmão com quem deu o seu passeio altaneiro ao Mar, num dia de glória.
Chega entretanto, muito tempo passado, a alvorada do regresso. E encontras o rapaz de monco pendente, sentado num tronco seco perto da barragem. E a moçada deita-lhe pedras:
— Eh! O teu irmão morreu. Levou-o a Tormenta.
Mas ele olha para ti e sorri-te. Se necessário, desafiará nesse instante a moçada emproada da terra, porque ele está ligado ao irmão por uma aliança inquebrável. E tu serás nesse dia testemunha de todas as mazelas daquela vila, que não enxergava que o olho à porra, tinha um irmão, dono de uma traineira altaneira. E o irmão, morto (ou não) na Tormenta, lavá-lo-á do cuspo da vila. Ser-lhe-á couraça contra as pauladas e muralha contra as pedras.
E na biqueira do proa, o enjeitado, agora brioso e bem direito, — aquecido ao sol do irmão — dirá à vila em peso: “aqui!!!” Depois, inebriado de felicidade, pedirá ao irmão que faça embarcar, uma a uma, todas pessoas dali, para que, mesmo na barragem, saciem a sua enorme fome desse MAR chamado solidariedade. E o enfezado, purificado pela aragem rija que fustiga um barco ao vento, não será mais só ele. Rodeado de povo, não estará sozinho, sem ... o outro. Será de novo... dois.
segunda-feira, 18 de maio de 2009
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