domingo, 31 de maio de 2009

Lei do financiamento dos partidos

A revisão agora feita não é nem inocente nem desinteressada

Manuel Raposo in Mudar de Vida

O que terá levado, recentemente, a totalidade dos partidos parlamentares a mudar uma lei do financiamento partidário (aprovada em 2003) que era tão compatível com os interesses das forças do poder? Fazer o jeito ao PCP? Também. Mas, não só.

Em 2003, uma maioria parlamentar estabeleceu que os donativos aos partidos tinham de ser documentados por cheque ou equivalente. Fora disso, o montante dos donativos não podia passar de 21 mil euros. Ficou tramada a Festa do Avante, de onde o PCP recolhe boa parte dos fundos. E ficaram tramados também todos os pequenos partidos, existentes ou futuros, mas disso nada se falou.

A coisa era coerente, portanto, com o sentido de democracia que as forças do poder exibem. Como as suas fontes de financiamento não são as quermesses nem os pequenos donativos populares – mas as grandes empresas ou os capitalistas a quem servem por via do poder – tudo estava em conformidade.

Há dias, a nova lei alargou para perto de 1 milhão e 300 mil euros o montante dos donativos não sujeitos a documentação bancária. Ficaria assim salvo o interesse do PCP; e todos os demais partidos (que não têm festas do Avante) se mostraram muito compreensivos para com as dificuldades do PCP, afectando que, da sua parte, não haveria interesse no caso. Como disse nos últimos dias a dra Manuela Ferreira Leite, chegando a ser cómica, “O PSD não tem receitas com essa origem e, como não tem receitas com essa origem, [o assunto] não nos diz respeito”. Brilhante, para quem dias antes tinha aprovado uma revisão legislativa “consensual”.

Mas, contra esta falsa inocência, há a lembrar que, pelo meio, houve novidades.
Veio a lume em 2007 o escândalo – entretanto abafado – de um financiamento de um milhão de euros do Grupo Espírito Santo ao CDS, em 2004-2005, como paga de favores feitos pelos então ministros do CDS Nobre Guedes e Telmo Correia. O donativo foi encoberto por recibos falsificados e este descuido (ou desplante) custou amargos de boca ao responsável das finanças do partido e obrigou Paulo Portas a umas quantas desculpas cretinas.

Aconteceu também a denúncia do financiamento do PSD, nas eleições autárquicas de 2001, pelo gigante da construção civil Somague que resultou na condenação pelo Tribunal Constitucional, em Fevereiro de 2008, dos “mecenas” da empresa e do responsável financeiro do partido.

Aconteceu ainda saber-se (em Maio de 2007) do financiamento, a partir do Brasil, do candidato do PS pelo círculo fora da Europa, nas eleições de 2005, por um escroque, membro da “máfia dos bingos”, que acabou preso na Operação Furacão – mas que, dois meses depois das ditas eleições, fora nomeado cônsul honorário de Portugal em Cabo Frio.

Estes episódios vieram demonstrar que a moralidade de 2003 também poderia constituir um embaraço para os partidos do poder.

A revisão agora feita não é, por isso, nem inocente nem desinteressada. Com efeito, para além daquela alteração, a única de que se falou, houve outras bem significativas. Uma, consistiu em dispensar os partidos de contabilizar como gastos seus os pagamentos “em espécie”, por exemplo, uma campanha de publicidade paga directamente por um qualquer apoiante. Outra, consistiu em eliminar a obrigatoriedade de abater às contribuições dadas pelo Estado os donativos obtidos pelos partidos. Em resultado disto, pode muito bem acontecer que uma campanha bem gerida dê lucro!

Há agora, com a nova lei, maiores riscos de facilitar a passagem para os cofres partidários de dinheiro sem rasto, como apontam os críticos da nova lei? Sem dúvida. Mas, como os exemplos do CDS, do PSD e do PS mostram, não foi a lei supostamente mais apertada de 2003 que coibiu os seus autores de a violar; ou que levou os tribunais a serem exemplares com os prevaricadores. E não vai ser o limite mais generoso dos donativos em dinheiro sonante que vai abrir portas à corrupção – porque essas portas estão já abertas e não valem apenas o tal milhão e 300 mil euros.

Os autores da nova lei esfalfam-se agora, diante das críticas, em demonstrar que não era sua intenção relaxar a vigilância e chegam a admitir, como fez o PSD, um “ajustamento à lei” se “tiver efeitos perversos”. A preocupação, porém, não está nos “efeitos perversos” mas na forma de os mascarar.

O drama dos partidos do poder é evidente. Por um lado, não conseguem encontrar a fórmula mágica que lhes permita toda a liberalidade possível de obtenção de fundos sem que se perceba, a partir daí, quais são as suas clientelas e as suas dependências. Por outro lado, não podem estar seguros de que as limitações legais que imponham ao assunto não se virem contra eles – e voltem a revelar-se mais casos como os acima relatados.
É natural, portanto, que, em busca da fórmula ideal, a lei não se fique por aqui.

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