domingo, 24 de maio de 2009

O HOMEM QUE AMAVA O CINEMA

O QUE DELE DIZEM OS AMIGOS
1
Miguel Esteves Cardoso
O João é um menino. É um menino que, a cada momento da vida, acaba de descobrir uma coisa. É sempre uma coisa maravilhosa que tem de abraçar com muita força mas depois largá-la para poder mostrá-la aos amigos e partilhá-la com toda a gente.
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Porque se não a partilhar, se não a cantar, se não se destruir a elogiá-la de maneira a ser tão irresistível como ele – até chegar a confundir-se com ele ao ponto de não sabermos qual amamos mais, se ele se as coisas que ele nos ensinou a amar - , se não se puder parti-la aos pedaços para poder dar um bocado a cada um, na esperança que todos a queiram reconstruir depois, ele já não é capaz de amar tanto aquela coisa, porque acredita que a coisa é grande e boa de mais para uma só pessoa e sente-se indigno de gozá-la sozinho. É assim o João.
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O João Bénard é um amigo. É um amigo que, a cada momento da vida, faz sempre como se tivesse acabado de apaixonar-se por nós. Não lhe interessam nada as coisas que mudaram, as asneiras que fizemos, a decadência em que entrámos, a miséria que subjaz às nossas opiniões ou o grau de petrificação das nossas almas. Para ele somos sempre os mesmos. É um leal. Está sempre connosco como se fôssemos tão frescos como ele. Puxa-nos pela manga da camisa, protege-nos da tempestade, desata a rir a meio das encrencas, arranja tabaco clandestino, deixa-nos subir para os ombros para vermos melhor, para saltar para o outro lado, mostra-nos fotografias nunca vistas, de actrizes lindas, escondidas debaixo da camisola – e faz tudo descaradamente, não se importa de ser apanhado, não tem vergonha nenhuma. É um prazer estar com ele, parece que todo o universo está em causa. É assim o João.
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O João Bénard é uma alma. É uma alma que, a cada momento da vida, desde que nasceu, sempre fez pouco do corpo e das coisinhas de que o corpo precisa. Tinha um corpo transparente, com a alma a ver-se lá dentro. Ou então era a alma que projectava o corpo no ecrã da pele. É por isso que todos nós o conhecemos como se conhece Deus.
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Deus, apresento-Te João Bénard. João Bénard, apresento-te Deus.
(Público)

2
Manoel de Oliveira
Entre a emoção e o desgosto pela perda do seu amigo, Manoel de Oliveira recorda João Bénard da Costa como uma figura marcante dos seus filmes, desde O Passado e o Presente (1972). “Ele tinha uma voz esplêndida e um carisma muito forte. Quando falava, não falhava nada. Já quando tinha de se movimentar, não controlava tão bem o corpo.” Oliveira ‘descobriu’ Bénard da Costa como potencial actor dos seus filmes no início dos anos 70, quando foi apresentar à Gulbenkian o projecto daquele filme. “Logo que o ouvi ler uma passagem da peça de Vicente Sanches, vi que tinha ali um actor admirável.” Sob o pseudónimo Duarte de Almeida, Bénard da Costa participou em mais de uma dezena de filmes com Oliveira. Entre eles, há a curiosidade de ter representado a figura do Papa por duas vezes: Clemente X em Palavra e Utopia e João XXIII na curta de Chacun Son Cinéma, do 60º aniversário de Cannes. “Acredito que, após a sua morte, ele me tenha organizado as coisas para nos reencontrarmos no céu.”
(Público)

3
Jorge Silva Melo (encenador)
“Tudo o que ele pensava interessava-me. Para mim é uma figura fundadora, paternal, admirável, e admiravelmente contraditória.”

4
João Mário Grilo (cineasta)
“Uma figura decisiva na preparação para a democracia”, num país “carenciado de pessoas que sacrificaram a vida por uma causa pública e por valores essenciais.”

5
Gonçalo Ribeiro Teles (arquitecto)
“Era uma pessoa que sedimentava o passado para compreender o presente. Era de uma actualidade espantosa por isso.”

6
Paulo Branco (produtor de cinema)
“A minha existência no cinema deve-se a João Bénard da Costa. […] O legado dele é fundamental para a minha geração. A nossa cultura cinematográfica foi grandemente assente nos ciclos que ele organizou na Gulbenkian [a partir de 1969].”

7
Mário Soares
“Foi um homem de grande cultura, com uma grande formação filosófica e um admirável escritor.”

8
Alberto Seixas Santos (cineasta)
“O cinema acabou. A morte do João é a confirmação disso.”

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