Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira nasceu no Funchal no dia 23 de Novembro de 1930.
Entre 1949 e 1952 frequentou o curso de Filologia Românica, na Universidade de Coimbra. Publicou os primeiros poemas por essa altura, na colectânea Arquipélago. De regresso a Lisboa, trabalhou na Caixa Geral de Depósitos e, posteriormente, como angariador de publicidade. De resto, são múltiplos os ofícios que se conhecem ao poeta (meteorologista, delegado de propaganda médica, empregado de cervejaria, cortador de legumes, policopista, encarregado de biblioteca, etc).
Em 1954 deu à estampa três poemas na colectânea Poemas Bestiais. Frequentou o grupo do Café Gelo, no qual pontificou Mário Cesariny, e colaborou com vários jornais e revistas. O seu primeiro livro, O Amor em Visita, publicado por Luiz Pacheco na Contraponto, apareceu em 1958, impondo-o desde logo como um dos casos mais notáveis da poesia portuguesa post-surrealista.
A Colher na Boca, colecção de poemas publicado em 1961, granjeia-lhe definitivamente um lugar ímpar entre os mais jovens poetas portugueses, seguido de Poemacto (1961) e Lugar (1962).
Os Passos em Volta, livro de contos publicado pela primeira vez em 1963, reflectem a vida de andarilho de Herberto Helder. Nos contos que compõem este volume, o autor prolonga, numa prosa que é o estuar da sua imagística, todo o sémen da sua poesia, e o que resulta é um ritual de si em torno da mulher.
Em 1964 co-organizou e colaborou no n.º 1 de Poesia Experimental. Em 1968 participou como actor no filme As Deambulações do Mensageiro Alado, de Edgar Gonçalves Preto, e gravou dois discos de poemas seus. Em 1973, publicou os dois volumes antológicos (1953-66 e 1963-71) de Poesia Toda (Plátano).
Já no final da década de 70, foi editado Photomaton & Vox na Assírio & Alvim, editora que passará a publicar toda a sua obra.
No ano seguinte recusou o Prémio Fernando Pessoa, atribuído pela edição da obra Do Mundo.
Sobre a sua obra, Natália Correia escreveu o seguinte (Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, 1965): "[...] fecundo, inspirado e romântico poeta que levou alguns observadores a evocar Holderlin, definição que implica a constatação de uma retórica classissista em que se excede a sua obra. A poesia de Herberto Helder, sempre obsessiva, reflecte como que um imenso orgasmo sem fim. Nela, a mulher, o género mais do que o amor individualizado, é a musa universal, receptáculo dos seus excessos e do êxtase que o projecta numa insaciável tensão. [...] O erotismo de Herberto Helder, além de ser a mais pertinente constante da sua inspiração, tem a particularidade de se consubstanciar numa sensualidade homérica e luxuriante como a naturaza mais intrincada e primitiva."
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HÁ CIDADES COR DE PÉROLA
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Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.
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Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence,
o da minha loucura, escada
sobre escada.
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Mulheres que eu amo com um
desespero fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
Imente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.
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Dentro de minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.
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Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
de sua cabeça
ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.
Lugar
Poesia Toda
Assírio & Alvim, 1979
.
CICLO
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Escuto a fonte, meu misterioso desígnio
de cantar o amor.
Da tremenda alegria da carne
deve vir o espírito do canto, da vossa
deslumbrante alegria, ó intensas
criaturas solares.
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Tudo o que é como sinal fecundo
de terra, tudo o que se toca
entre comoção e pensamento
deve participar do vosso cântico, ó
corpos apoteóticos, corpos
reconstruídos sobre o frio ascético dos cadáveres.
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Vosso é o vinho libertador, a erva
virgem, ó pequenas cabras rituais, a erva
junto à água, junto ao silêncio,
junto à aragem - vosso é o pólen inconspurcado,
o fruto, o dia, a delirante
lua vermelha.
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Vindes na simples harmonia da fome
e da mesa
com vossos gestos sexuais de uma graça infantil,
com vosso puro impudor
e a generosidade ingénua
do pecado.
.
Eu canto as vossas coxas verdes, o antigo
turbilhonar do instinto
que castamente transportais como um depósito
no sacrário do sexo,
canto o vosso ventre diurno,
a infinita inocência da vossa entrega
milagrosa.
.
Humildemente teço minhas palavras gratas
sobre a bela ferocidade
da vossa carne, ergo minha taça,
oiço o rumorejar oculto da fonte.
Humildemente dissipo a solidão, aceito vosso apelo de esperma,
mereço a poesia.
.
Humildemente repudio a morte
A Colher na Boca
Assírio & Alvim, 1961
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