Há uma interpretação inconsistente de textos de Kant para fundamentar moralmente o capitalismo. Apresentaremos num primeiro momento, os elementos básicos da posição de Kant sobre a moralidade para, em seguida, julgarmos moralmente as práticas propagadas em nome do capitalismo. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant deduz a partir do estudo transcendental dos juízos morais a sua forma necessária como imperativo categórico: " Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" . O imperativo categórico nos obriga à acção moral pela força de sua própria necessidade racional; é em razão de tal necessidade que ele pode e deve ser universalizado. O imperativo hipotético faz isso para obter vantagem naquilo, é por outro lado, imoral, pois a acção não é determinada pela lei objectiva da razão prática, mas por alguma inclinação ou tendência particular. Cabe ao homem dever seguir a sua própria vontade determinada pela razão que se torna, assim, boa-vontade. Só há, pois, moralidade quando há autonomia. A heteronomia, cumprir a lei ou a norma para evitar a sanção ou para obter vantagens, é imoral pois a torna meio para uma outra coisa. A autonomia é a condição de quem elabora a sua própria norma e o faz de modo racional universalizando-a como um fim em si mesma para a conduta moral. Ora, como todos os homens participam da mesma razão -- se todos raciocinarem de modo correcto, cada qual elaborará normas válidas para todos. Assim, o exercício da liberdade supõe uma consciência esclarecida e a determinação da vontade a partir da lei moral, comportando-se cada homem como legislador e membro no Reino dos Fins, nunca podendo tomar como meio aquilo que deve ser um fim. A segunda formulação do imperativo categórico, considerando a sua matéria ou o seu fim diz, portanto, o seguinte: " Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como meio". Analisando a diferença entre coisas e pessoas, meios e fins, Kant conclui que: " No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade. O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço...; aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é, dignidade. (...) Portanto, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade". A conclusão final a que chega Kant é esta: " Assim eu devo, por exemplo, procurar fomentar a felicidade alheia, não como se eu tivesse qualquer interesse na sua existência quer por inclinação imediata, quer, indirectamente, por qualquer satisfação obtida pela razão, mas somente porque a máxima que exclua essa felicidade não pode estar incluída num só e mesmo querer como lei universal". Para garantir o exercício da liberdade individual é necessária a constituição de um Estado, a manutenção da ordem formulada sob leis, e sua imposição aos que não vivem a liberdade segundo os princípios acima expostos. Do mesmo modo o estabelecimento das leis deve respeitar também tais princípios. Assim, afirma Kant que " A pedra de toque para o estabelecimento do que devem ser as leis de um povo está em saber se o próprio povo poderia ter-se imposto as leis em questão (...). O que o povo não pode decretar para si próprio muito menos pode ser decretado por um monarca, pois a autoridade legislativa deste último baseia-se em que ele une a vontade pública geral na sua própria.". Ora, considerando a moral kantiana, a maior parte das práticas preconizadas pelo capitalismo é imoral. Destaquemos apenas alguns exemplos do que resulta objectivamente das práticas capitalistas.
As pessoas são tratadas como meio quando o valor de propriedade é colocado acima da dignidade humana dos que moram pelas ruas, em barracas ou não têm terra para plantar porque estão privados da propriedade privada. Entre considerar a propriedade como meio para a realização da dignidade humana do conjunto dos sujeitos que constituem o povo de um país, ou considerá-la como privada ao uso colectivo para a realização da dignidade humana, a fim de atender somente aos interesses de seu dono particular, o liberalismo escolheu a defesa da propriedade privada, independentemente do estatuto imoral no trato dessa propriedade. As pessoas são tratadas apenas como meio quando são descartadas do processo produtivo ou têm os seus proventos diminuídos para resguardar ou ampliar a competitividade da empresa, operando com tecnologias mais sofisticadas a fim de manter ou ampliar lucros aos seus proprietários e accionistas. O desemprego em todo o mundo é alarmante, sendo que no Brasil atinge actualmente muitos milhões de trabalhadores; sem condições de trabalhar com dignidade e mais de 32 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza absoluta. As pessoas são tratadas apenas como meio quando o Estado é privatizado transformando a saúde, educação e a cultura em objecto de comércio para o enriquecimento e o lucro de grupos em troca da prestação desses serviços por algum preço que a maioria da população só poderá pagar com duras penas.
As pessoas são tratadas como meio quando têm de se submeter a leis que elas próprias nunca imporiam a elas mesmas no correcto exercício da sua razão respeitando a sua própria dignidade e tomando-se simultaneamente como um fim. Que pai ou mãe se imporia respeitar a cerca de um latifúndio que nada produz ou de um terreno baldio há dezenas de anos no espaço urbano quando vê os seus filhos passando fome porque sendo agricultor não tem terra para plantar, ou sendo um desempregado que apanha papelão ainda tem de pagar um aluguer exorbitante, o que lhe impede de alimentar minimamente os filhos e a si mesmo?
O capitalismo é imoral porque é surdo ao sofrimento e à miséria dos milhões de excluídos do processo produtivo, porque justifica essa exclusão em nome da racionalização dos custos e da competitividade entre os agentes privados, defendendo a utilização egoísta da propriedade privada acima da função social que toda propriedade deve cumprir, desconsiderando como objectivo a realização, da felicidade alheia.
http://www.milenio.com.br/mance/quatro.htm
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