terça-feira, 6 de janeiro de 2009

O mito do aperfeiçoamento profissional na Era da Informação

Uma das crenças mais difundidas sobre a nova economia informacional é de que as tecnologias mais avançadas elevarão o padrão técnico e cultural dos trabalhadores. A realidade, porém, aponta em uma outra direcção.
O estabelecimento de uma relação direta entre o avanço tecnológico e o aperfeiçoamento profissional dos trabalhadores em geral, parece constituir um consenso. É uma ideai da qual ninguém parece duvidar. Só que a realidade é muito diferente.
Em sua monumental obra sobre a Era da Informação, Manuel Castells aborda a questão sob o título de: “A nova estrutura ocupacional”. Em suas palavras:
“Uma assertiva importante sobre o pós-industrialismo é que as pessoas além de estarem envolvidas em diferentes atitudes, também ocupam novos cargos na estrutura ocupacional. De modo geral, previu-se que, conforme entrássemos na chamada sociedade informacional, observaríamos a crescente importância dos cargos de administração, técnicos e profissionais especializados, uma proporção decrescente dos cargos de artífices e operadores e aumento do número de funcionários administrativos e de vendas”.[1]
A conclusão óbvia seria a de que a “qualidade” dos empregos melhoraria consideravelmente. Mas o que estamos vendo não é bem isso. Castells critica “a versão ‘esquerdista’ do pós-industrialismo [que] aponta a importância cada vez maior das profissões de mão-de-obra semiqualificada (freqüentemente não-qualificada) do setor de serviços como contraponto ao crescimento do emprego para profissionais especializados”. [2]
Após citar várias estatísticas sobre os EUA, Canadá, Grã-bretanha, Japão, Alemanha e França, baseando-se em uma série de comparações, que o próprio autor reconhece serem extremamente difíceis, dado as diferenças de definição das denominações de cargos e funções em cada país, ele conclui:
“...sabemos de outras fontes que houve polarização da distribuição de renda nos EUA e em outros países nas duas últimas décadas. Contudo, não concordo com a imagem popular da economia informacional como geradora de um número crescente de empregos de baixo nível no setor de serviços a uma taxa desproporcionalmente mais alta que a taxa de aumento do componente da força de trabalho formada por profissionais especializados e técnicos. De acordo com esses dados [as tais estatísticas], isso não é verdade”.[3]
O problema com esse tipo de análise, feita por sociólogos e economistas, é que raramente captam as mudanças na “natureza” do trabalho, nas plantas industriais e nos complexos de escritórios. Muitos cargos, cuja denominação permanece a mesma, são constantemente “esvaziados” de seus conteúdos tradicionais. E conseqüentemente, perdem valor. Daí a “polarização” da distribuição de renda proveniente dos salários.
Nesse caso, os próprios profissionais das áreas de tecnologia, percebem melhor o problema. Mesmo em uma obra didática, que trata de interfaces, sensores, atuadores, etc, destinada a alunos de cursos de eletrônica, automação industrial e robótica, podemos ler essa observação na introdução:
“É evidente, pelo colocado até aqui, que a automação nas indústrias gera desemprego. Milhares de tarefas, principalmente nas linhas de produção, que antes eram executadas por operários de certa qualificação, agora são executadas por robôs”.[4]
Destacamos a expressão “certa qualificação” porque os verdadeiros especialistas sabem que essas tecnologias não eliminam pessoas que executam tarefas rudimentares. A
própria obra mencionada, não ensina a projetar máquinas que multiplicam a “força” dos seres humanos e sim dispositivos eletromecânicos, controlados por circuitos eletrônicos, capazes de substituir o “raciocínio” dos trabalhadores. Isso faz toda a diferença.
Mas o centro da questão é muito bem colocado por um colega (o autor deste texto é engenheiro civil) que se dedica, entre outras coisas, ao estudo da automação industrial. Em suas palavras:
“A polêmica tradicional sobre a questão da desqualificação deve ser recolocada. De um lado, argumenta-se que as novas tecnologias exigem mais qualificações por parte dos trabalhadores, qualificação evidenciada pela necessidade de que adquiram capacidade de abstração para poder operar determinados tipos de equipamentos, o que implica maior educação formal. Por outro lado, especialmente à medida que as novas tecnologias tornam-se user friendly (“amigáveis” para o usuário), sua difusão estaria implicando, uma vez mais, um processo de desqualificação para uma quantidade crescente de trabalhadores”.[5]
Ai está à chave da questão. Até o advento das máquinas ferramenta de controle numérico (MFCN), a operação de um torno, por exemplo, exigia que o operário possuísse várias habilidades, manuais e mentais. Isso porque a precisão e a qualidade do produto final, dependiam de o operário entender perfeitamente o funcionamento da máquina.
Com a introdução das MFCN, essas habilidades se tornaram desnecessárias. Tauile nos conta que em uma fábrica por ele visitada, ao lado de uma máquina de eletrofusão a fio, isolada dentro de uma grande redoma de vidro, o operador (um fresador muito experiente), foi perguntado sobre o que necessitaria para melhorar o seu trabalho.
O operador sugeriu que lhe dessem um espanador, e explicou porque: “Desde ontem, ás 14 horas, quando começou a usinagem desta peça (que ainda iria até o final do dia), não tenho nada para fazer...pelo menos, com um espanador, posso procurar uma poeirinha para limpar”.[6]
Está claro que com o tempo, após a absorção integral da nova tecnologia, esse fresador acabará por ser de fato substituído, por alguém com capacidade apenas para usar um espanador...
Em nossa própria experiência na área de análise e desenvolvimento de sistemas de informação para empresas de comércio varejista e prestação de serviços, vemos com freqüência o aparecimento de um tipo de funcionário que apelidamos de “caderninhos”.
Isso porque copiaram de seus colegas mais experientes, as anotações resumidas sobre como operar um programa, executar certas rotinas periódicas, fazer backup, “fechar” o mês ou ano, etc. Seguem cada passo, sem entender nenhum comando, e muito menos o porque estão executando cada procedimento, mesmo no limitado contexto de seu departamento.
Então de onde teria surgido o mito da “maior qualificação” profissional? É simples. Quando da implantação de novos sistemas, sejam MFCN computadorizadas, robôs ou redes de computadores em escritórios, os antigos funcionários são essenciais para o sucesso da transição. Qualquer profissional de automação e/ou informática sabe muito bem disso.
Então são selecionados os elementos mais experientes e leais á administração, para cursos de “aperfeiçoamento”, ou seja, aprenderão noções de matemática com números relativos, conceitos básicos de fluxogramas e programação de computadores. Depois o curso se completa com as instruções de como usar as novas máquinas e/ou os novos programas.
O objetivo disso não é “elevar” o nível do profissional e sim estabelecer uma base de comunicação entre eles e os responsáveis pela implantação dos novos equipamentos. A
idéia é que todos falem a “mesma língua”, pelo menos por algum tempo. Esse tempo costuma coincidir apenas com um pouco mais do que o necessário para os devidos ajustes do equipamento, e para que as adaptações a “cultura” da empresa, com suas particularidades, conhecimentos práticos e específicos, acabe por ser incorporada à rotina do novo sistema.
O profissional assim “valorizado”, facilitará a automação das tarefas desempenhadas por ele, seus colegas e eventuais ajudantes. Depois disso, a própria rotatividade da mão-de-obra se encarregará de eliminar, aos poucos, esses profissionais. Completado o processo e “digerida” a nova tecnologia, poderão ser substituídos por pessoas que dominam apenas a operação dos equipamentos, sem entender seu funcionamento.
Vários exemplos desse processo podem ser apresentados. É a “supervisora” de caixas eletrônicos nos bancos, que nunca viu uma linha de programa de computador e nem tem a menor noção de contabilidade. São os atendentes de “call centers” que seguem um rígido “script” e prestam inúmeras informações sobre assuntos que na verdade, desconhecem completamente.
Um exemplo dramático é a diferença entre o antigo “rádio-técnico”, responsável pelo conserto de aparelhos de rádio, TV e som, e o profissional de manutenção de computadores. A maioria desses últimos, não tem a menor idéia de como funciona um circuito eletrônico. Alguns já dispensam até o tradicional multímetro e outros nem sabem como usa-lo. Limitam-se a trocar placas e a reinstalar todo o software, sem jamais entender o que “deu errado” antes.
Cursos de informática, supostamente responsáveis pela formação de uma nova elite tecnológica, na realidade apenas habilitam usuários para a operação de “aplicativos”. Isso não tem nenhuma relação com domínio tecnológico, é como aprender a dirigir carros de passeio, a única exigência é não ser analfabeto.
Analisando as ofertas de cursos de três empresas líderes do mercado, apuramos o seguinte: O primeiro, com 150 unidades estabelecidas em várias cidades, oferece um curso de “Qualificação em administração e informática” [7]. Em quatro trimestres, ensina-se o MS Office de forma engenhosa. Associam-se noções de secretariado com o Word, Contabilidade como o Excel, Vendas e Telemarketing com o PowerPoint, etc. Muito útil. Mas nenhum dos módulos aborda programação.
Um segundo, com 120 unidades, oferece 14 cursos sobre aplicativos para no fim propor apenas 2 de programação: Visual Basic e Lógica.[8]. Um terceiro oferece 10 cursos de aplicativos, 4 genéricos (sendo 1 intitulado “Como conquistar um emprego”) e de novo apenas 2 relacionados com programação [9].
Conclusão: Mesmo um aparente crescimento no número de pessoas em cargos de administração, técnicos e profissionais especializados, não significa maior necessidade de aperfeiçoamento profissional. O fato de alguém trabalhar em uma linha de montagem de última geração, não significa que tenha idéia de como ela funciona.
Usuários de programas sofisticados, de bancos de dados relacionais e de recursos de redes, não sabem necessariamente nem o que, nem porque estão fazendo o que aprenderam. Com exceção de uma minoria realmente especializada, e muito bem paga, a tendência é que os demais trabalhadores sejam cada vez mais “homogeneizados” em uma massa que sabe apenas usar recursos tecnológicos padronizados.
Ironicamente, quanto mais “inteligentes” forem às máquinas, mais “simplórios” podem ser seus usuários.

Notas:

[1] Manuel Castells - “A Era da Informação: Economia, sociedade e cultura” – Vol. I – “A Sociedade em Rede” – 2003 – Ed. Paz e Terra S/A - 7ª Edição - Pág. 280
[2] Idem.
[3] Idem, Pág. 284
[4] Fernando Pazos – “Automação de Sistemas & Robótica” – 2002 – Axel Book do Brasil Editora – Pág. 19
[5] José Ricardo Tauile – “Para (re)construir o Brasil contemporâneo” - 2001 – Ed. Contraponto – Pág. 122.
[6] Idem. Pág. 130.
[7] Bit Company – www.bitcompany.com.br
[8] S.O.S. Computadores - www.soscomputadores.com.br
[9] Visual Mídia – www.visualmidia.com.br


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