domingo, 13 de abril de 2008


A MORTE DE PORTUGAL 2

" (...) se quiséssemos definir o tempo moderno e contemporâneo da cultura portuguesa entre 1580 - data da perda da independência - e 1980 - data do acordo de pré-adesão à Comunidade Económica Europeia -, passando simbolicamente pelo ano de 1890 - data do Ultimatum britânico a Portugal -, atravessando 400 anos de história pátria, defini-lo-íamos como o tempo do canibalismo, o tempo da culturofagia, o tempo em que os portugueses se foram pesadamente devorando uns aos outros, cada nova doutrina emergente destruindo e esmagando a(s) anterior(es), estatuídas estas como inimigas de vida e de morte, alvos a abater, e as suas obras como negras peçonhas a fazer desaparecer. Católicos ou erasmitas, papistas ou hereges protestantes, jesuítas ou "pombalinos", religiosos ou maçónicos, tradicionalistas ou modernistas, espiritualistas ou racionalistas, cada corrente só se entendia como una e independente quando via o seu reflexo "puro" nos olhos aterrorizados e impuros do adversário, quando o desapossava de bens, lhe subtraía o recurso para a sobrevivência e, em última instância, quando o prendia ou matava, por vezes mesmo "matando-o" depois de este estar morto, como sucedeu com os restos mortais de Garcia da Horta, em Goa, exumados e queimados. Porém, se umas correntes "matavam" o morto, privilégio dos dominicanos da Santa Inquisição, auto-orgulhosamente cognominados os "cães do Senhor", outras - animadas do mesmo ódio teológico ou racionalista - "ressuscitavam-no", como aconteceu com os maçónicos e republicanos face ao legado pombalino, fundado numa das mais impressionantes mitologias culturais alguma vez inventadas em Portugal, erguendo a maior e mais importante estátua do Marquês de Pombal em pleno centro de Lisboa. Assassínios individuais e colectivos (perseguição aos judeus pela Inquisição; perseguição da alta nobreza, dos jesuítas, do "herético" Cavaleiro de Oliveira e de pensadores e poetas pré-românticos pelo Marquês de Pombal; perseguição aos sacerdotes pelos jacobinos positivistas e republicanos; perseguição aos comunistas pela Igreja Católica e pelo Estado Novo no século XX), prisões individuais e colectivas - todos os protagonistas da história da cultura portuguesa, com raríssimas excepções, entre as datas indicadas (1580-1980), têm as mãos sujas e não poucos morreram em desespero às suas próprias mãos, ora abandonando desalentados a cortesia do Poder (desde Sá de Miranda, recolhendo-se solitário a Terras do Basto, passando por Alexandre Herculano e Domingos Tarroso a José Régio e Miguel Torga), ora exilando-se (desde Francisco Sanches, António Nunes Ribeiro Sanches e Luís António Verney a praticamente todos os grandes vultos da cultura portuguesa do século XX, de Aurélio Quintanilha a Adolfo Casais Monteiro, de Agostinho da Silva a Barradas de Carvalho, dos irmãos Cortesão a Eduardo Lourenço, Jorge de Sena e José-Augusto França), ora suicidando-se (Antero de Quental, Camilo Castelo Branco e Manuel Laranjeira). Não temos feito história da cultura com o pensamento, mas com o sangue, alimentando-nos antropofagicamente do corpo do adversário - eis o complexo canibalista cultural português que nos tem definido".


[Real, M. (2007). A Morte de Portugal (1 ed.). Porto: Campo das Letras, pp. 98-100]

Publicada por metatheorique em 11:16

Sem comentários: